Terceirização versus proteção constitucional

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Há quase dois séculos, Henri Lacordaire sentenciava que entre o forte e o fraco, entre o rico e o pobre, entre o senhor e o servo é a liberdade que oprime e a lei que liberta. Sua denúncia permanece incrivelmente atual, além de sintetizar, com propriedade, o longo processo histórico de lutas contra profundas desigualdades e exclusões sociais. As garantias daí resultantes converteram-se, ao lado das liberdades civis e políticas, em princípios estruturantes das constituições democráticas na atualidade.

 A Constituição brasileira de 1988 é bastante representativa dessa tendência. Sua inclinação para a proteção social, incomparável a constituições anteriores, é indissociável e determinante da identidade nacional, tanto como realidade vivida, quanto como projeto constitucional.

Nesse contexto, ganha destaque decisão do Supremo Tribunal Federal, no ARE 713.211/MG, que reconheceu repercussão geral em recurso que se volta contra o entendimento da Súmula nº 331 do Tribunal Superior do Trabalho. A súmula diferencia atividade meio e fim, com o objetivo de definir os efeitos e as responsabilidades na prestação terceirizada de serviços. O fundamento da repercussão geral é a liberdade de contratação, que se extrai da garantia de que ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5º, II, CF). Até então, o STF não admitia RE por violação ao 5º, II, especialmente por meio de argumento tão genérico.

A decisão surpreende na medida em que sugere ser possível extrair do texto constitucional garantia de liberdade absoluta que anula direitos sociais expressamente previstos.

O extenso rol de direitos sociais trabalhistas em nossa constituição é fruto da universalização do Direito do Trabalho e de sua consolidação dogmática. A conciliação entre trabalho e capital foi possível graças a uma notável fórmula. O trabalhador é livre para contratar, superando as modalidades de trabalho forçado. O empresário também o é, assim como para perseguir os resultados da atividade econômica. Porém, ele assume os riscos e a responsabilidade por diversas prestações. A vinculação direta entre as partes e a recíproca dependência entre elas são fundamentais para o êxito dessa construção. Não se trata de mero intercâmbio de interesses, mas de genuína relação pessoal, baseada em deveres de lealdade e proteção. O equilíbrio é resguardado pela organização coletiva e pela intervenção estatal para, ao lado dos ganhos do empreendimento, assegurar condições dignas de trabalho.

As tensões resultantes do modelo de regulação do trabalho na sociedade nem de longe ameaçam desestabilizá-lo ou mesmo reconfigurá-lo. Ao contrário, onde mais consolidado ele se apresenta, mais elevado é o padrão de bem-estar social e maior é o desenvolvimento econômico com estabilidade.

Os valores da relação pessoal de trabalho reforçam uma dinâmica própria de mercado, baseada na cultura da confiança, do prestígio e do respeito, que costuma gerar e preservar benefícios para toda a sociedade. O seu reverso é o capitalismo predatório, orientado pela selvageria e competição sem limites, que corrompe pessoas e práticas e geram riquezas concentradas à custa de passivos sociais e econômicos irrecuperáveis. A terceirização aqui se encaixa, ao romper o vínculo pessoal de trabalho, destruir os seus valores, deslocar a assunção dos riscos da atividade econômica e a responsabilidade pelas prestações. A terceirização tende a converter o trabalhador em mercadoria, depreciar o valor do seu trabalho, utilizá-lo comercialmente e descartá-lo quando obsoleto, por doenças e inutilidade.

Em nosso país, é esse o lado perverso da terceirização que vem se revelando, com altos índices de acidentes de trabalho e formas cruéis de exploração dos trabalhadores. Essa prática degrada o Direito do Trabalho, apesar de aparentemente aplicá-lo. No momento, a Súmula nº 331 do TST representa o avanço possível que procura impedir a generalização dos efeitos nocivos da terceirização.

É cedo para prognósticos sobre o resultado do julgamento do recurso extraordinário. A pergunta que está lançada é se vai prevalecer a Constituição, com a força de seus dispositivos em prol da dignidade da pessoa humana, ou a lex mercatoria, que converte tudo e todos em instrumento para a riqueza de poucos. Nesse último caso, numa inversão do preciso diagnóstico de Lacordaire, seria anunciado: entre o trabalhador e o empresário é a proteção constitucional que oprime e a terceirização que liberta. Um retrocesso desastroso!

* Ricardo José Macedo de Britto Pereira é Subprocurador Geral do Ministério Público do Trabalho, Colíder do Grupo de Pesquisa da Faculdade de Direito da UnB Trabalho, Constituição e Cidadania