Autor de estudo sobre concursos critica modelo brasileiro e propõe mudança radical

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Fernando Fontainha é professor e pesquisador do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (IESP-UERJ) e doutor em ciência política pela Université de Montpellier 1 (UM1), na França. No Brasil, o acadêmico critica o atual modelo adotado pelo país para seleção de servidores públicos – principalmente, as provas de múltipla escolha e as taxas de inscrição – e defende que, atualmente, o governo não recruta os melhores profissionais do mercado. Autor do estudo “Processos seletivos para a contratação de servidores públicos: Brasil, o país dos concursos?”, Fontainha conversou com o Correio sobre a radical mudança que ele propõe para dissolver a cultura brasileira do “concurseiro profissional”. 

O que o senhor acha do modelo atual de contratação de servidores públicos?
Trata-se de um modelo fundado numa cultura do patrimonialismo e do clientelismo. No entanto, ele não é apenas um produto desta cultura, ele é, reflexivamente, algo que a ela dá forte impulso. Em suma, nosso modelo de seleção de servidores é focado na figura do chamado “concurseiro”, e seu rol de garantias face o Estado. O principal objetivo dos concursos, que é angariar os melhores recursos humanos para a prestação de serviços públicos, é hoje um coadjuvante no modelo.

Qual o perfil do profissional selecionado, atualmente, por meio de concursos públicos no Brasil?
O “concurseiro” profissional. O Estado brasileiro hoje recruta servidores especializados em responder a questões de múltipla escolha, e em técnicas de adaptação às expectativas de uma banca examinadora. Estas competências não são em si desprezíveis, muito embora se tenha dificuldades de imaginar um setor da administração pública onde elas possam ser úteis. O quadro se agrava ainda mais pelo fato de haver pouca ou nenhuma formação inicial.

O que, exatamente, você propõe para melhorar esse sistema?
No estudo que coordenei (disponível aqui) tomamos a liberdade de sugerir algumas mudanças. As mais significativas seriam: extinção da taxa de inscrição, proibição de provas de múltipla escolha, a realização de provas práticas, a integração entre estágio probatório e formação inicial como etapa final da seleção, e a criação de uma empresa pública que teria o monopólio da organização dos certames.

Se você tem uma vaga de emprego de atendimento ao publico, o ideal é que você contrate alguém com essa experiência. Um atendente de supermercado com cinco anos de experiência será uma melhor escolha para trabalhar com atendimento no INSS do que alguém que só estudou para passar no concurso. Porque ela, provavelmente, tem uma noção melhor de como lidar com o público. Imagina recrutar um médico por meio de uma prova de múltipla escolha quando ele, na verdade, vai fazer uma cirurgia cardíaca?

Vi que você analisou os modelos de contratações de funcionários públicos em outros países. Como você acha que o Brasil pode aproveitar essas referências?
Nosso estudo usou o modelo francês não como referência para nós, mas como ponto de partida para estranharmos nosso modelo. Por lá não existe taxa de inscrição, bem como é vedado que um candidato que reprovou várias vezes volte a concorrer. Isso nos ajudou a estranhar um modelo onde se cobram taxas elevadas para que um cidadão concorra a um cargo público, e não haja quaisquer limites ao número de vezes que alguém pode se apresentar a cada concurso. Aliás, bom “concurseiro” faz prova quase todo domingo.

Posso citar melhor o exemplo da França, porque foi onde fiz a pesquisa. Mas existem vários outros países com modelos diferentes. Os Estados Unidos são um caso interessante, porque têm a prática da agregação contínua. Na polícia dos EUA, por exemplo, demora anos antes do funcionário se tornar realmente estável. As provas ocorrem ao longo da carreira, existe uma academia e, além disso, o funcionário passa por uma série de estágios. A cultura lá é de uma formação ao longo do tempo. Não só uma prova e depois você está dentro. A Alemanha também adota esse modelo de agregação a longo prazo.

No Brasil, a disparidade de prerrogativas e salários que existe na administração pública é terrível. Essa escadinha louca, em que o funcionário faz vários concursos, é exatamente por conta da diferença colossal que existe entre vários cargos que exigem os mesmos requisitos. Aqui, dois cargos de nível superior, com a mesma jornada de trabalho, podem ter salários completamente diferentes. Por isso, à vezes, muitos passam para um cargo, mas continua fazendo concurso. Em outros países isso é muito mais racionalizado. 

Por que você é contra as taxas de inscrição em concursos?
A taxa de inscrição, dentre outros males, além de não dissuadir os ditos “aventureiros”, privatiza a relação e a experiência dos candidatos com o serviço público. E mais: nosso estudo quantificou que, a partir da relação entre a taxa de inscrição e o salário inicial oferecido, é produzida seleção adversa em desfavor dos cargos menos remunerados.

Como o modelo atual favorece a indústria de concursos?
Principalmente através deste ciclo vicioso que combina a taxa de inscrição com a ilimitação de “tentativas”. Isto do ponto de vista do mercado da organização dos concursos. Um mercado maior ainda, o da preparação, ou dos “cursinhos”, tem sua força extraída do que chamamos autocentralidade dos concursos, marca maior da “ideologia concurseira”. As competências necessárias para passar em concursos não são ensinadas nem nas escolas e universidades, e tampouco em escolas profissionais de Estado. O saber especializado que serve aos concurseiros é hoje de monopólio dos “cursinhos”, que ensinam basicamente como se adaptar às “formas” de seleção, porém crendo ensinar “conteúdos” ligados às áreas do saber postuladas nas ementas dos diferentes editais.

A prova prática e a valorização da experiência como pré-requisitos quebra o mercado de cursinhos. Porque se você está trabalhando, não tem tempo para cursinho. O modelo que proponho não é nada elitista, pelo contrário, ele daria oportunidade para aqueles que não podem se dedicar exclusivamente aos estudos. No Brasil, alguns concursos já exigem essa experiência prévia. Então não seria uma grande novidade. É o caso de concursos para a magistratura. Eles pedem, no mínimo, três anos de atividades jurídicas para o candidato.