AUDITORIA CÍVICA: Uma nova ferramenta da gestão pública?

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2 de maio de 2013

Geniberto Paiva Campos*
Eduardo Guerra **
Jovita**

1. INTRODUÇÃO
A implementação efetiva das Políticas Públicas no Brasil enfrenta dificuldades, por vezes incontornáveis, decorrentes, entre outros: 1. dos limites legais impostos à ação do Estado, 2. da ineficiência dos gestores e 3. da falta de planejamento e fiscalização da prestação dos serviços.

Na área da Saúde Pública estas três variáveis se combinam, criando sérios obstáculos à qualidade dos serviços, e induzindo os segmentos populacionais que dispõem de melhor poder aquisitivo a busca de recursos assistenciais alternativos, que imaginam encontrar nos chamados Planos de Saúde.

De acordo com Mendes , os sistemas de atenção à saúde são respostas sociais deliberadas às necessidades de saúde das populações. Deve ocorrer, portanto, uma sintonia muito fina entre essas necessidades e a forma como o sistema se organiza para respondê-las.

No caso brasileiro as formas de organização dos serviços de saúde apresentam deficiências que incluem as condições listadas acima, agravadas pela concentração das prioridades do atendimento na área hospitalar, em detrimento das unidades básicas, decorrência da aplicação de políticas assistenciais equivocadas. Disso resulta um sistema ineficiente, que não se articula entre si com intensa sobrecarga dos serviços de emergência dos hospitais, na medida em que os usuários não encontram respostas na rede primária de atenção.

Como trabalhar as mudanças, essenciais para a modificação desse padrão excludente e gerador de mais desigualdades? É possível que um dos pontos estratégicos de atuação esteja situado na possibilidade de controle social. Não o controle dos espaços conselhistas, que abrigam representantes de governos e de usuários, e se tornam, cada vez mais, espaços de discussões estéreis, onde prevalece a manutenção dos interesses e do ponto de vista governamentais. Mas pela criação de instrumentos de avaliação direta, potencialmente capazes de induzir transformações efetivas no sistema.

A vigência da Lei de Acesso à Informação possibilitou a criação de ações de controle direto da prestação serviços públicos. Agregando novos atores: servidores públicos das áreas de avaliação e controle fiscal e da esfera jurídica com a população usuária do sistema de saúde, desenvolve-se uma estrutura denominada “AUDITORIA CÍVICA”. Voltaremos ao tema mais adiante.

2. A REINVENÇÃO DO SUS

Sem exagero, é possível afirmar que a AUDITORIA CÍVICA, se corretamente aplicada, coloca em perspectiva real a “reinvenção do SUS”, na medida em permeia a relação entre a Sociedade e o Estado. Não mais na condição de contendores intransigentes. Mas como parceiros naturais de uma causa comum: a eficiência e até mesmo a excelência na prestação de serviços de saúde .

O nascimento do SUS se dá em meio ao processo de redemocratização do país. Após a longa vigência do período autoritário por duas décadas, o Brasil se abria para uma nova era, na qual os direitos sociais deveriam tornar-se uma conquista definitiva, sem possibilidades de recuo. A Saúde inscrevia-se como Direito Constitucional, coroando a vitória dos movimentos sociais, que por décadas lutaram por esse objetivo.

Por que, então, o SUS não se tornou, ao longo da sua existência, uma verdadeira conquista popular? Algo pelo qual o povo lutaria, naturalmente, em sua defesa?

A estratégia política do Movimento Sanitarista foi conduzida com êxito pelos seus integrantes. Conseguiu vocalizar e inscrever na agenda do Estado os direitos à saúde, não só dos grupos mais vulneráveis, mas direito de toda a população.

Tornar operacionais as transformações propostas e, aparentemente, aceitas pelos níveis formais do poder público, foi um grande desafio ainda a ser superado. Não se pode subestimar a inércia e a tendência à imutabilidade das práticas burocráticas do aparato estatal, que não se anima a apoiar, automaticamente, projetos mudancistas.

Outro fator a dificultar a consolidação do Sistema Único de Saúde/SUS, como vanguarda e liderança da assistência integral à saúde da população brasileira, definidas em seu princípios normativos, foi a sequência de governos neoliberais, os quais, na prática, colocavam os “princípios do SUS” em rota de colisão com a política de “estado mínimo” então adotada e que fazia parte da onda privatizante que se tornaria hegemônica em alguns países.

Como o SUS, em seu período de implantação e expansão, não teve a chance de se firmar e, portanto, tornar-se reconhecido como sistema prestador de serviços de qualidade pelos diversos segmentos da população, a sua defesa ficou praticamente restrita às lideranças dos movimentos sociais e parcelas da classe política com representação no Congresso Nacional. Embora estes grupos de vanguarda política mostrassem grande capacidade de mobilização, as críticas permanentes veiculadas pela imprensa foram minando gradativamente o conceito do SUS, cuja marca ficou associada à ineficiência operacional e lhe sendo atribuída toda a culpa pela “falência do sistema de saúde”, habilmente manipuladas por setores interessados na exploração lucrativa do mercado da saúde.

Vale destacar, finalmente, alguns equívocos na operacionalização do Sistema. Um deles, a Municipalização. Estabelecida como um verdadeiro dogma, transferiu aos municípios, talvez de forma muito rápida e açodada, a inteira responsabilidade pela prestação de serviços. Dessa forma, repassando aos governos municipais a missão de organizar e operacionalizar a rede de serviços públicos de saúde, tarefa para a qual a grande maioria não tinha desenvolvido ainda a necessária experiência e capacitação.

3. O SUS EM FUNCIONAMENTO: ALÉM DA RETÓRICA

Alguns teóricos sanitaristas já perguntam: “O SUS tem jeito?”

Para aqueles que acompanham com real interesse e apoiam o desenvolvimento do SUS enquanto projeto de alta relevância social a resposta deverá ser, obrigatoriamente, SIM!

Esta resposta, natural e confiantemente afirmativa, implica em assumir o desafio e o compromisso de apontar caminhos possíveis para a criação de mecanismos que coloquem o SUS em funcionamento pleno. Claro, presumindo que estejam atendidas as necessidades básicas do Sistema: 1. financiamento; 2. política de recursos humanos; 3. garantia de incorporação e atualização de tecnologias de ponta – diagnósticas e terapêuticas; 4. regras claras no inter-relacionamento com o setor privado/suplementar da saúde; 5.criação e aplicação de leis que retirem ou atenuem os impeditivos legais ao funcionamento do Sistema, vigentes na atualidade.

Dessa forma, o SUS estaria novamente capacitado a desenvolver uma política assistencial competente, com grande eficiência operacional, proporcionando o acesso pleno dos usuários aos seus serviços, organizados de forma racional e eficiente.

A questão remanescente é: como fazer o usuário confiar no sistema público de saúde? Uma das respostas é fazê-lo atuante na avaliação e controle dos serviços, inserindo-o na gestão das ações de governo.

Alguns autores denominam esta participação de “gestão social”, à qual acrescentam o termo “transformadora”. Trata-se da introdução de cidadãos no processo administrativo, mudando a lógica da gestão do aparato estatal. Esta geralmente adota a repartição do poder entre as corporações de ofício e o loteamento político – partidário de cargos entre aliados, nem sempre alinhados com os objetivos dos programas sociais propostos. (Inojosa )

A decisão de trazer a cidadania para a gerência das políticas públicas implica claramente no compartilhamento real do poder de execução das ações do Estado. É um passo além da política dos Conselhos, posta em prática há anos na área da saúde e que até agora não atendeu as imensas expectativas colocadas nesse formato de participação comunitária.

A possibilidade de tornar viável e eficiente essa nova proposta depende de alguns pressupostos a serem necessariamente atendidos.
Voltemos então à análise do potencial transformador da AUDITORIA CÍVICA, entendida como uma ponte para o controle social das ações de governo e aplicada inicialmente na Atenção Primária de Saúde/APS.

4. COMPREENDENDO A “AUDITORIA CÍVICA”

A Auditoria Cívica constitui uma etapa inicial da gestão cidadã. Seu objeto é o controle social da implementação e do desenvolvimento das políticas públicas.

Alguns projetos governamentais podem, claramente, prescindir do controle social permanente, em suas instâncias de execução. Isto se dá, por exemplo, no repasse periódico de valores financeiros para famílias de baixa renda, caso do “Bolsa Família.” Quando se trata da prestação contínua e direta de serviços à população, caso da Saúde, a participação do usuário, na forma do controle de qualidade dos serviços, torna-se imprescindível. Neste caso fala-se, sem exagero, em Cogestão das Unidades de Saúde, com o compartilhamento solidário da Sociedade e do Estado. Falamos, portanto de GESTÃO SOCIAL INOVADORA.

De acordo com Goulart , “a ideia norteadora da Auditoria Cívica é simples: um grupo de cidadãos, voluntários, é treinado para compreender o funcionamento dos hospitais e demais unidades de saúde pública. Em dia determinado, esse grupo vai a uma dessas unidades para entrevistar os usuários, os servidores e fazer uma avaliação do atendimento.”

Esta etapa inicial representa a fase do Diagnóstico. As informações colhidas farão parte de um relatório formal, contendo o elenco de problemas e dificuldades percebidas pela população e pelos prestadores de serviços e detectadas pela Auditoria Cívica. Este Relatório deverá ser encaminhado ás autoridades do Sistema de Saúde local, ou de nível mais elevado, quando se tratar de problemas cuja competência de resolução esteja acima da Regional de Saúde.

Em síntese, a Auditoria Cívica trata da participação popular efetiva na Gestão da Saúde Pública. De que forma essa participação será acolhida pelo Serviço Público? É impossível prever. Isto vai estar na dependência de algumas variáveis: nível de desenvolvimento institucional; do exercício de cidadania e participação popular; do grau de cultura de cidadania obtido pela comunidade e da aceitação e do entendimento por parte das autoridades governamentais da importância do controle social na eficiência da máquina pública.

A eficiência da prestação de serviços á população não pode mais ficar dependente do grau de comprometimento pessoal e da generosidade dos servidores. Afinal, a Saúde é um direito de cidadania, inscrito na Constituição e ninguém mais qualificado para fiscalizar o exercício pleno desse direito do que o próprio cidadão.

 

*: Observatório da Saúde do DF e Comissão Brasileira de Justiça e Paz

**: Observatório da Saúde do DF

[1] Mendes, E. V. – As redes de atenção à saúde. Organização Pan-Americana da Saúde. Brasília, 2011. 549p.