Quadro de muitos paradoxos e incertezas

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Autor(es): Por Yoshiaki Nakano

De 2004 a 2010, a economia brasileira cresceu em média cerca de 4% ao ano e nos deu a ilusão de que estávamos vivendo uma transição para crescimento acelerado e sustentado por longo prazo. A eleição de Lula em 2003, com promessas de geração de emprego e mais crescimento, representava claramente uma opção da sociedade brasileira por mudança e a rejeição do modelo econômico até então implantado desde o início dos anos 90, e cuja forma final vemos após o Plano Real.

Mas em 2011 e 2012, crescemos, em média, apenas 1,8 % ao ano, e em 2013 vivemos um quadro quase enigmático, pois não se trata de um problema de curto prazo, de retomada cíclica. Vivemos o que eu chamo de regime de baixo crescimento, um quadro estrutural com diversos paradoxos, enorme incerteza e um pessimismo profundo, particularmente no meio empresarial.

Aqui cabe fazer um rápido retrospecto histórico para entendermos os empecilhos de natureza estrutural ao crescimento. Não é com a simples mudança na orientação das políticas ou na retórica do governante que se muda a dinâmica da economia. São necessárias mudanças mais profundas, desde o pensamento econômico dos formadores de opinião e o correspondente quadro de referência conceitual para interpretar os fatos econômicos e os atos de governo, passando pelos interesses econômicos e políticos hegemônicos, instituições e o regime de políticas macroeconômicas de curto e longo prazos.

Lembremos que do início dos anos 1990 até a eleição de Lula predominou um paradigma que englobava os aspectos mencionados acima, e que poderíamos denominar de “paradigma da integração financeira global”.

Na onda liberalizante global a partir dos anos 80, o pensamento econômico hegemônico no Brasil e o modelo implantado, depois do Plano Real, tinha como componente básico o seguinte: o objetivo maior da política econômica era alcançar a estabilidade macroeconômica e conquistar credibilidade do mercado. Políticas voltadas para desenvolvimento econômico foram consideradas desnecessárias e o planejamento econômico de longo prazo foi transformado em sinônimo de atraso.

O diagnóstico era de que para crescer, como o fator escasso no Brasil é o capital, bastava abrir a economia e atraí-lo do exterior, visto que o mercado eficiente alocaria de forma ótima esses recursos. O crescimento acelerado seria, portanto, um resultado natural. Assim, toda prioridade deveria ser dada à liberalização da conta capital e a integração financeira global. A construção de uma estrutura produtiva nacional integrada competitivamente aos fluxos de comércio global não estava na agenda do governo, muito menos como objeto de políticas.

Para atrair capital bastaria uma política macroeconômica de curto prazo, garantindo uma taxa de juros doméstica acima do patamar internacional, deixar a taxa de câmbio flutuar livremente e dar garantias ao investidor externo com metas de superávit primário. O Banco Central deve ter uma única meta de inflação, pois utiliza apenas o instrumento juros. Para completar, nada de política industrial, setorial ou para estimular o desenvolvimento econômico.

O resultado desse regime todos nós conhecemos: baixo crescimento, ciclos sucessivos de recuperação e crise, forte elevação da carga tributária, crise de balanço de pagamentos, tendência de apreciação da taxa de câmbio e desindustrialização, é o “regime de baixo crescimento”.

No entanto, o interessante é que apesar da ideologia liberal e pró-mercado, o Estado brasileiro continuou grande, super intervencionista, com serviços públicos extremamente ineficientes e um dos, senão o maior, entraves ao crescimento econômico. A rigor nada se fez para reduzir o tamanho do Estado nem o seu intervencionismo burocrático. Ao contrário, a partir do início dos anos 1990 até o fim do governo Lula, a carga tributária aumentou dez pontos percentuais do PIB, tornando o Brasil um “completo outlier” pelos padrões internacionais. Nada mais verdadeiro do que a expressão: “O Estado brasileiro não cabe no nosso PIB”.

De fato, salários exorbitantes dos funcionários públicos, com a folha de salário por trabalhador dos governo três vezes maior do que do setor privado, gestão burocrática e ineficiente, ao invés de gestão por resultado, geram uma despesa corrente maior do que a receita corrente. O déficit público pressiona a taxa de juros, não deixa espaço para investimentos públicos, e vem contraindo os investimentos privados.

Entre 2004 a 2010, tivemos um interregno de crescimento causado por choques exógenos. A forte depreciação da taxa de câmbio decorrente da crise do balanço de pagamentos de janeiro de 1999 gerou, a partir de 2002/2003, um mini-boom de exportação de manufaturados utilizando especialmente a capacidade ociosa existente, que desencadeou o início da recuperação da economia brasileira. Esse mini-boom durou até 2005/2006 e gerou um impulso no crescimento da indústria de transformação que sobreviveu até 2010.

A rigor nada se fez para reduzir o tamanho do Estado nem o seu intervencionismo burocrático

O segundo choque que acelerou o crescimento foi demográfico, com a redução, em termos absolutos, do estoque de jovens trabalhadores procurando o primeiro emprego a partir de 2004. Com isso, houve um esgotamento da “oferta ilimitada de trabalho” que inverteu e mudou a dinâmica do mercado de trabalho, com pressão salarial na base da pirâmide e forte impacto redistributivo. Daí o surgimento da classe C, que representa hoje quase 100 milhões de brasileiros incorporados ao mercado de consumo.

Finalmente, tivemos o choque de preço de commodities, a partir do final de 2003, com forte crescimento da demanda da China, o que promoveu o crescimento de setores produtores de commodities e removeu as restrições ao crescimento.

Neste período, a taxa de inflação, apesar de alta, esteve sob controle em função da forte apreciação da taxa de câmbio (em mais de 100%) e a existência de amplo desemprego de mais de 10% no início do período.

Como já ressaltei, não tivemos mudanças profundas na direção de um Estado mais eficiente e capaz de atender às aspirações básicas da sociedade. Mais do que isso, há uma distância entre a retórica e a realidade dos fatos que gerou uma dissonância cognitiva. Enquanto a população, particularmente no seu segmento empresarial, rejeitava o “paradigma de integração financeira” que era contra a intervenção do Estado, mas de fato pouco fez nesta direção. Os novos governos do PT ganham justamente com a retórica pró-geração de emprego e crescimento, mas com intervencionismo estatal arraigado em sua alma.

Em outras palavras, a população em geral, ainda que de forma contraditória e confusa, rejeita o atual Estado brasileiro burocrático e intervencionista. A retórica anti-Estado era parte do paradigma rejeitado pela população, mas agora, especialmente no governo Dilma Rousseff, o novo papel reservado ao Estado se manifesta de forma mais clara. Assim, as manifestações pró setor privado, como as desonerações tributárias, acabam gerando mais ruído e incertezas no meio empresarial, levando-os a contrair os investimentos.

Com a eleição da presidente Dilma Rousseff, o governo assumiu explicitamente o compromisso de crescimento acelerado e introduziu diversas mudanças, dando um novo direcionamento à política macroeconômica. Controlou e depreciou a taxa de câmbio, reduziu significativamente a taxa de juros, expandiu o crédito, reduziu a carga tributária na indústria e deu início à agenda da competitividade, com a redução no custo de energia, entre outras. Ações essas que vão ao encontro das reivindicações dos empresários industriais e trabalhadores, mas não ativam os investimentos.

Entretanto, 2011 e 2012 mostraram que não entramos ainda num novo regime de crescimento acelerado, mas sim, numa “armadilha de baixo crescimento com inflação alta”. Os paradoxos não param por aí. Em 2012, a demanda doméstica continuou crescendo mais de 7%, mas os investimentos produtivos recuaram cerca de 5% e a indústria de transformação contraiu a sua produção em 2,5%, num “quadro enigmático”. De fato, o governo vem estimulando a demanda agregada, o consumo com expansão de crédito, redução temporária de IPI e investimentos com juros baixos.

2011 e 2012 mostraram que entramos numa “armadilha de baixo crescimento com inflação alta”

No entanto, a oferta doméstica de bens da indústria de transformação sofre contração, sendo atendida pelas importações, indicando um problema mais profundo de natureza estrutural. Por outro lado, a oferta doméstica de serviços e outros não “tradables” respondem aos estímulos da demanda, levando a economia à situação próxima a pleno emprego e gerando inflação. Temos assim um quadro aparentemente paradoxal de contração na produção industrial com inflação alta. Para desfazer o enigma precisamos entender quais as causas estruturais que travam a produção industrial e os investimentos.

A rigor, as causas estruturais do atual regime de baixo crescimento e inflação alta vêm do “paradigma de integração financeira global”, dominante nos governos anteriores. O foco desse paradigma é a liberalização do movimento de capitais, sua remuneração com grande diferencial positivo na taxa de juros, na crença de que o mercado financeiro alocaria produtivamente esses recursos e promoveria o crescimento acelerado.

Neste paradigma, para garantir retorno estimulante aos investidores estrangeiros, era fundamental gerar a tendência persistente de apreciação da taxa de câmbio. Assistimos a isso desde o Plano Real, com forte onda de desindustrialização até 1998, quando a participação da indústria de transformação no PIB caiu para 15,7%. A crise cambial de janeiro de 1999 e a forte desvalorização inverteram a tendência com a reindustrialização do país, que denominamos de mini-boom da indústria de transformação de 2002/2003 a 2005/2006.

Entretanto, o regime de política macroeconômica persistente de taxa de juros doméstica muito acima da internacional no governo Lula provocou nova onda de forte apreciação na taxa de câmbio, o que voltou a favorecer o setor de não-tradables em detrimento dos tradables, promovendo assim seguidas ondas de desindustrialização, com profundas mudanças na estrutura produtiva do país. A participação da indústria de transformação, que tinha saltado para 19,2% do PIB em 2004, volta a cair para 13,2%.

A indústria de transformação (tradables), setor mais dinâmico e difusor de inovações, com produtividade mais do que 30% superior à média da economia, ganhos de escala e geradora de externalidades, responsável por mais de 70% dos gastos em P&D, entrou em profunda crise. A apreciação do real promoveu a expansão do setor de não-tradables, serviços com produtividade mais baixa incapaz de gerar efeitos dinâmicos e ser a “locomotiva” do crescimento mais acelerado.

A expansão de serviços absorveu trabalhadores, provendo elevação de salários acima da produtividade, gerando inflação persistente e elevação de custos generalizados nos demais setores e outras consequências perversas.

O custo unitário do trabalho na indústria de transformação aumentou a uma taxa média de 6,6% entre 2004 e 2011. O dinamismo da demanda doméstica (emergência da classe C etc) e estímulos fiscais ao consumo foram em grande parte transferidos para o exterior, com a invasão das importações. O coeficiente de importações na indústria de transformação aumentou de 11,6%, em 2004, para 22,3%, em 2012.

Apesar do dinamismo transmitido pelo forte crescimento da demanda doméstica, a oferta da indústria de transformação e os investimentos sofrem contração. Esse regime gerou também uma nova tendência de deterioração rápida das transações correntes do país e aumento persistente do passivo externo e seus encargos, insustentáveis no longo prazo. Esse último resultado também é paradoxal, pois quedas do saldo comercial tendem a acontecer quando a economia cresce de forma acelerada e não quando a indústria contrai a produção.

Para remover os entraves ao crescimento é preciso ampliar o debate, eliminando as dissonâncias cognitivas em relação à função do Estado e do mercado. Existem muitas falhas em ambos que precisam ser eliminadas através de profundas reformas. A sociedade brasileira precisa ampliar o seu horizonte temporal e suas lideranças chegar a um acordo sobre o que queremos no futuro.

Se quisermos, por exemplo, dobrar a renda per capita em 15 anos ou 20 anos e assim atingirmos o limiar do desenvolvimento, as lideranças têm que decidir pragmaticamente o que fazer para alcançar este objetivo. Certamente envolve escolhas difíceis.

Para começar, para crescer é preciso investir mais e para isto poupar mais. É preciso elevar a taxa de investimento para pelo menos 25% do PIB, elevando o investimento público em infraestrutura em 5% a 6% do PIB. Candidato natural para ampliar a poupança é a redução do consumo público neste montante ao longo do tempo.

As causas estruturais do atual regime vêm do “paradigma de integração financeira global”

É preciso atacar de frente o “Custo Brasil” que torna os nossos produtos da indústria 34,2%, em média, mais caros que o importado de 15 principais parceiros comerciais do Brasil, segundo um estudo da Fiesp. O “Custo Brasil” e a taxa de câmbio apreciada tornam a nossa indústria de transformação não competitiva e o país inviável. Será que podemos crescer e empregar mais de 200 milhões de brasileiros na agricultura e serviços, lembrando que quando a indústria de transformação cresce são os serviços pessoais que crescem, como vem acontecendo no Brasil nos últimos anos? Para atacarmos o Custo Brasil a agenda está definida. A carga tributária e o custo do capital de giro representam um Custo Brasil de cerca de 20% acima dos importados.

Por sua vez, a taxa de câmbio apreciada torna os produtos importados cerca de 20% mais baratos que os produzidos domesticamente. Assim, a taxa de juros de empréstimos dos bancos com seus “spreads” mais do que cinco vezes maiores do que nos principais parceiros comerciais, a taxa de câmbio apreciada e carga tributária excessiva constituem o trio mortal. Com taxa de juros, taxa de câmbio mais competitiva, estável e sustentável no longo prazo e carga tributária condizente com o nosso nível de desenvolvimento, é possível reindustrializar o país. É a expansão do setor de tradables que deve ser a locomotiva e não o setor de não-tradables.

Dada a restrição do mercado de trabalho, o aumento da produtividade é essencial para o Brasil sair da “armadilha do baixo crescimento”. Mas não é algo exógeno à economia, mas endógeno e em grande parte resultado do próprio crescimento, isto é, da ampliação da taxa de investimentos, particularmente com a reindustrialização do país. Como o setor industrial tem produtividade acima da média dos demais setores, a reindustrialização permite um ganho estrutural de produtividade ao realocarmos recursos produtivos neste setor. Nos últimos anos fizemos o inverso, realocando recursos escassos, trabalhadores, particularmente para o setor de serviços pessoais.

Finalmente, não podemos deixar de mencionar que para reduzir a carga tributária, colocando-a dentro dos padrões internacionais, a reforma do setor público é vital. Para iniciar, devíamos impor, por lei, um teto para o aumento da despesa corrente para aumentar os investimentos públicos e reduzir a carga tributária ao longo de um determinado período. Acabar com os ganhos e benefícios exorbitantes do funcionalismo público. Equiparar e integrar os mercados de trabalho público e privado são requisitos de qualquer República. Com a implantação de gestão por resultado, esta integração e rotatividade de funcionários do setor privado para o público e vice-versa permitirá ao setor público dar saltos de produtividade e redução nos seus custos.

Dessas definições e escolhas será possivel fazer um planejamento estratégico de longo prazo para o Brasil transitar definitivamente em um novo paradigma de crescimento acelerado.

Yoshiaki Nakano, mestre e doutor em economia pela Cornell University. Professor e diretor da Escola de Economia de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EESP/FGV). Ex-secretário da Fazenda do governo Mário Covas (SP).