Orçamento participativo deve ser aplicado com cautela para atingir objetivos

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Recentemente, a Presidência da República editou o Decreto 8.243, de 23 de maio de 2014, em que institui a Política Nacional de Participação Social (PNPS) e o Sistema Nacional de Participação Social (SNPS), como uma tentativa de resposta aos clamores vindos das manifestações de rua e com o objetivo declarado de “fortalecer e articular os mecanismos e as instâncias democráticas de diálogo para uma atuação conjunta entre o governo federal e sociedade civil”. Pretende-se possibilitar o compartilhamento de decisões sobre programas e políticas públicas, por meio de instrumentos como conselhos, conferências, ouvidorias, mesas de diálogo, consultas públicas, audiências públicas e ambientes virtuais de participação social.

No inciso V do artigo 4º deste Decreto, é estabelecido, como um de seus objetivos, aquele de desenvolver mecanismos de participação social nas etapas do ciclo de planejamento e orçamento. Parece-nos, aqui, que a intenção é a de implantar o conhecido mecanismo de Orçamento Participativo em nível federal, expressão da cidadania fiscal, designação comumente dada para a participação direta do cidadão na definição das políticas públicas e seu viés financeiro em sociedade.

O orçamento participativo é, assim, a forma de participação popular na elaboração do orçamento público. Constituiria uma espécie de “terceiro centro opinativo” de questões orçamentárias, que funcionaria paralelamente ao Poder Executivo, que propõe o projeto de lei orçamentária, e ao Poder Legislativo, que o aprova.

Nos lugares onde se adota o modelo de orçamento participativo, a concretização da participação popular na elaboração do orçamento público ocorre através da realização de assembleias locais (municipais, regionais ou de bairros), em que qualquer integrante da coletividade pode participar dos debates, elegendo representantes ou delegados para transmitirem e negociarem com o governo as deliberações assembleares. Haveria, assim, uma maior capilarização na identificação das necessidades locais, especialmente nos grandes centros urbanos, onde é comum a Administração Pública se distanciar do cidadão.

Os principais temas de interesse local que tradicionalmente são abordados no orçamento participativo são: saneamento básico, habitação, pavimentação, educação, assistência social, saúde, circulação e transporte, esportes e lazer, iluminação pública, turismo, cultura, saneamento ambiental e infância e juventude.

Encontramos em diversos países a adoção do mecanismo do orçamento participativo em suas cidades. Assim foi com Rosário, na Argentina; Saint-Denis, na França; Montevidéu, no Uruguai; Barcelona, na Espanha; Toronto, no Canadá; Bruxelas, na Bélgica etc. No Brasil, já tivemos diversos exemplos, como em Vila Velha, no Espírito Santo; Angra dos Reis, Volta Redonda, Barra Mansa e Niterói, no Rio de Janeiro; Lages, em Santa Catarina; Porto Alegre, no Rio Grande do Sul etc.

Recentemente, o modelo de orçamento participativo foi adotado pela Prefeitura de São Paulo, através do Decreto 54.837, de 13 de fevereiro de 2014, que criou o Conselho Municipal de Planejamento e Orçamento Participativos (CPOP), no âmbito da Secretaria Municipal de Planejamento, Orçamento e Gestão.

O Conselho paulistano tem as seguintes atribuições (art. 2º): I – propor diretrizes para a elaboração da proposta do Programa de Metas, do Plano Plurianual (PPA), da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA); II – propor metodologia para o processo de participação da sociedade civil na discussão e elaboração da proposta do Programa de Metas, do Plano Plurianual (PPA), da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e da Lei Orçamentária Anual (LOA); III – promover a participação popular na elaboração dos instrumentos de planejamento e orçamento da Prefeitura do Município de São Paulo; IV – colaborar com a construção de mecanismos de monitoramento e avaliação da execução do Programa de Metas, do Plano Plurianual e da execução orçamentária anual; V – acompanhar e monitorar a execução orçamentária anual e o cumprimento do Programa de Metas e do Plano Plurianual, contribuindo para possíveis revisões e manutenção da integração, articulação e compatibilização dos instrumentos de planejamento; VI – propor e participar de audiências públicas, plenárias, oficinas de formação, seminários e outras atividades participativas relacionadas à elaboração e discussão dos instrumentos de planejamento; VII – articular-se de forma contínua e permanente com os Conselhos Participativos Municipais das Subprefeituras e demais instâncias participativas da Administração Pública Municipal;VIII – aprovar a constituição de comissões internas temporárias; IX – elaborar e aprovar seu Regimento Interno e decidir sobre as alterações propostas por seus membros; X – outras atribuições compatíveis com sua natureza.

Na Constituição Federal de 1988, a norma mais próxima à ideia de orçamento participativo encontra-se no artigo 29, que contém dispositivos que estabelecem a possibilidade de participação popular nas questões locais. Assim é que o inciso XII prevê a “cooperação das associações representativas no planejamento municipal” e o inciso XIII permite a “iniciativa popular de projetos de lei de interesse específico do Município, da cidade ou de bairros, através de manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado”.

Não há, porém, na Constituição, qualquer menção à vinculação da atividade de elaboração do orçamento pelo Poder Executivo às propostas populares. Resta-nos, assim, considerá-las como sugestões legitimadas pelo interesse público local, sem implicar obrigação do Poder Executivo na incorporação dos seus termos ao projeto de lei orçamentária, até porque a própria Carta Maior estabelece no artigo 165 que a elaboração do orçamento será de iniciativa exclusiva do chefe do Poder Executivo.

Neste momento, devemos fazer algumas ponderações e reflexões a respeito da participação popular na elaboração do orçamento para que se possa encontrar o melhor caminho a ser trilhado nesta matéria. Afinal, a implementação do orçamento participativo apresenta vantagens e desvantagens.

A primeira das vantagens é a de que haveria um fortalecimento da cidadania e da democracia deliberativa ao incluir a voz social no processo de elaboração do orçamento público. Ademais, permitir-se-iam escolhas comunitárias sugeridas a partir da identificação de suas maiores necessidades, com legítimo conhecimento de causa. E, ainda, o cidadão teria amplo acesso e transparência quanto ao custo/benefício do orçamento.

Porém, como desvantagens, podemos dizer que haveria um possível enfraquecimento do atual modelo de representação política ao se demonstrar a sua dispensabilidade diante do novo molde pretendido pela “democracia representativa, participativa e direta”. Outrossim, “grupos de pressão” e movimentos sociais e econômicos atuariam diretamente na elaboração do orçamento, agora com legitimidade normativa, tendo como consequência negativa uma possível manipulação do conteúdo orçamentário por interesses individuais específicos. Não se pode também esquecer da importância da necessidade de conhecimento técnico para análise das propostas, o que nem sempre se vislumbra na composição destes conselhos, comissões e fóruns. Além disso, a falta de visão global da peça orçamentária diante do foco específico e local pode trazer como um de seus efeitos o desequilíbrio fiscal. Finalmente, o aumento da burocracia poderá engessar e dificultar a tomada de decisão.

O ideal de democratização das políticas públicas e de participação na elaboração do orçamento é mais do que louvável. Afinal, se hoje assistimos à nação livremente manifestar a sua insatisfação com os bens e serviços públicos oferecidos à população, especialmente nas áreas de saúde, educação, segurança, transporte público, habitação e saneamento básico etc., isto se deve ao inequívoco amadurecimento da democracia brasileira, com a inquestionável conscientização da população dos seus direitos de cidadania, decorrentes do texto e do espírito da nossa Carta de 1988.

Inegável reconhecer-se no orçamento público um fundamental instrumento de planejamento e controle financeiro, sendo mais do que um documento técnico, ao revelar as políticas públicas adotadas pelo Estado buscando atender às reais necessidades e interesses da sociedade, conjugando-as com as pretensões e possibilidades de realização do governante. O nível de conhecimento da real importância dos orçamentos públicos ainda é muito incipiente no Brasil, mas é por intermédio deles que se torna claro em que o governo está usando os recursos obtidos dos cidadãos. É por isso que a conscientização sobre o papel do orçamento e a participação social em sua elaboração se demonstram importantes neste processo, pois de nada adiantaria um orçamento público — documento de previsão de receitas e autorização de despesas — desprovido de legitimidade e de efetividade.

Porém, em se tratando de um dos mais importantes pilares do Estado Democrático de Direito brasileiro — a cidadania fiscal —, as pretensões decorrentes da implantação do Decreto 8.243/2014 precisam ser refletidas e aplicadas com parcimônia e cautela, a fim de se encontrar os meios necessários para potencializar ao máximo os seus benefícios e não deixar-se contaminar pelas desvantagens da medida.