“Essa história de caixa dois não existe no Brasil”, diz o presidente do TSE

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O homem que comanda a disputa nas urnas de 2014 é categórico ao negar a existência de caixa 2 nas campanhas políticas no Brasil. Para o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ministro José Antonio Dias Toffoli, trata-se de um “não assunto”. Sem limitação estabelecida de gastos para as campanhas, a contabilidade oficial de candidatos e partidos comporta todas as despesas, afirma o ministro.

Aos 46 anos, Toffoli conhece as entranhas da política. Natural de Marília (SP), formado pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP), foi assessor jurídico da liderança do PT na Câmara, advogado do partido em campanhas presidenciais, subordinado de José Dirceu na Casa Civil e Advogado-Geral da União (AGU) no governo Lula.

A relação com a sigla e o ex-presidente valeu a indicação feita por Lula para o Supremo Tribunal Federal (STF). Toffoli tomou posse em 2009, aos 41 anos. Ignorou a pressão para se declarar impedido e julgou o processo do mensalão, no qual o ex-chefe José Dirceu era réu. Em maio passado, ao assumir o TSE, garantiu desprendimento do passado:

– É página virada.

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Pelo menos três candidatos a governador renunciaram ao serem barrados pela Lei da Ficha Limpa. A lei está cumprindo sua função? Torna a eleição mais limpa?
Mais importante do que a Lei da Ficha Limpa foi a fixação de um prazo anterior às eleições para as renúncias. Fui designado relator pela ministra Cármen Lúcia para fazer as instruções das eleições de 2014, quando estabeleci um prazo de renúncia. Em 2012, os prefeitos renunciavam na véspera da eleição e eram substituídos pelo filho ou pela mulher. Não havia tempo para que o substituto fosse submetido ao crivo do contraditório, do debate de ideias, da disputa política. Foi determinante estabelecer que, ao menos 20 dias antes da eleição, aquele que fosse candidato majoritário não poderia renunciar. É uma conjugação: a Lei da Ficha Limpa junto com essa determinação. Sem ela, talvez uma candidatura como a do Arruda (José Roberto, no Distrito Federal) fosse até a véspera da eleição.

Contudo, substituir o candidato por parentes ainda é um hábito.
A questão do parentesco é muito mais profunda. Em uma federação como o Brasil, teríamos de entrar em estudos de sociologia, antropologia e cultura política para ver que o parentesco é uma das formas de formação da elite no país.

É preciso mudar a lei, proibir mulher ou filho de substituir um candidato que renuncia na véspera da eleição?
É uma das questões que precisamos romper. Temos a súmula vinculante número 13 no Supremo Tribunal Federal, que impede as nomeações de parentes em cargos públicos, o que é um grande avanço civilizatório em uma cultura de formação de elites pelo parentesco e pela política de famílias.

O Supremo Tribunal Federal deve decidir sobre o financiamento de campanha público ou privado?
Quando provocado, é. Todos que foram eleitos receberam dinheiro de empresas na campanha. O julgamento das doações de empresas já foi um início maduro de discussão. Na França, o limite de doação de pessoa física é de 4,6 mil euros (cerca de R$ 14,2 mil), nos EUA, de US$ 2,6 mil (R$ 6,2 mil). No Brasil, o cidadão pode doar até 10% da sua renda conforme o imposto de renda. Aqui, você não tem uma igualdade como há em outros países. Uma pessoa que teve uma renda de R$ 100 milhões, e existem no Brasil pessoas com essa renda, pode doar R$ 10 milhões. Já quem recebe um salário mínimo (R$ 724) doa pouco.

O senhor é a favor do financiamento público?
Exclusivo, não. O cidadão tem o direito de contribuir para sua campanha como contribui para sua igreja, seu clube. Agora, tem de haver limite para ter igualdade, para que os que têm muito dinheiro não extrapolem sua influência nas eleições. Limite de doação e limite de gastos são importantes.

O limite de gastos é um tema que não anda no Congresso.
Nos EUA, uma candidatura à Presidência teria direito a receber de financiamento público, mais ou menos, cerca de US$ 95 milhões (em torno de R$ 228 milhões). Ainda é menos do que as principais candidaturas declaram no Brasil. Na França, o limite do primeiro turno é de 15 milhões de euros (R$ 46 milhões) e, no segundo turno, de 20 milhões de euros (R$ 61,4 milhões).

E o caixa 2, ministro? A fiscalização e a Justiça Eleitoral conseguem barrar essa prática nas campanhas?
Temos condições de coibir o caixa 2, o problema é que no Brasil o caixa 1 contempla tudo, porque você não tem limite de gastos. No Brasil, você não precisa de caixa 2. O partido chega e fala que vai gastar R$ 400 milhões na campanha para presidente da República. Alguém precisa de caixa 2 no Brasil?

Então, por que os partidos e candidatos fazem caixa 2?
Na campanha para presidente da República, acho que não fazem. Falo com sinceridade, não fazem. Caixa 2 só se justifica quando há limite de gastos, e aí você quer escamotear o limite. Essa história de caixa 2 não existe no Brasil.

Mas e o recurso não declarado, que aparece em investigações e escândalos?
Alguém consegue gastar mais de R$ 400 milhões em uma campanha presidencial? O caixa 1 contempla tudo no Brasil. Nós temos de parar de agir com essas metáforas e mitos, e enfrentar a realidade. Nas campanhas, não há que se falar em caixa 2, porque no Brasil não há limite de gastos. Se tivesse, poderia se falar em caixa 2. A gente fica discutindo um não assunto.

Mas não é o caixa 2 que financia a corrupção?
É outra coisa. Se você tem a possibilidade de pessoa jurídica financiar campanha, você pode dizer que se cria um compromisso entre o financiador e o financiado. Nos EUA, em 1907, isso foi proibido. Em 1947, com o surgimento do sindicalismo, então se introduziu a proibição dos sindicatos contribuírem para as campanhas. Esse debate não é exclusivo do Brasil.

As empresas deveriam doar para as campanhas?
Uma coisa é falar de caixa 2, que acho que não tem nas disputas eleitorais, pois é o próprio candidato que define o seu limite de gastos. As doações são outra discussão. Pessoa jurídica vota? Se pessoa jurídica não vota, por que ela contribui? A questão não é falar em financiamento de candidatura ou de partido. Quem financia a democracia? No Brasil, é o grande capital. Isso é bom para democracia brasileira? Não. No mundo ocidental, tem se mostrado uma corrupção da vontade popular.


Mensalão: Toffoli ignorou a pressão para se declarar impedido de julgar e absolveu Dirceu, que acabou condenado.

O Supremo julgou exaustivamente o mensalão. Durante o julgamento, a defesa argumentava que era um esquema de recursos não contabilizados. Não foi caso de caixa 2?
A tática do caixa 2 na defesa do mensalão se mostrou absolutamente equivocada. Aquilo não era questão de campanha eleitoral, por isso que o Supremo condenou. Não foi julgado na Justiça Eleitoral.

O que o julgamento representou para o país? Foi um golpe na impunidade, mudou algo no Brasil?
A história vai dizer se mudou ou não o país.

A reeleição entrou no debate da campanha presidencial. O senhor é a favor ou contra?
No Brasil, se formos olhar da Proclamação da República até hoje, não se passou maior período de estabilidade democrática senão a partir da Constituição de 1988. Se olharmos a história do Brasil, todo presidente eleito é submetido a um teste de derrubada. Não digo que quem está no poder deva ser reeleito, mas a instituição da reeleição trouxe uma estabilidade em um país sem uma elite nacional, formado por uma confederação de elites regionais.

Então, a reeleição torna o Brasil mais estável para governar?
Para aquele que está no poder ter o mínimo de estabilidade, ele deve ter o direito de tentar a reeleição. O Brasil errou ao criar a República sem a reeleição. A Constituição de 1946 não conseguiu dar estabilidade com mandato de cinco anos. Depois, a redemocratização sem reeleição levou ao impeachment do primeiro presidente eleito pelo voto popular (Fernando Collor de Mello, em 1992), o que não é pouca coisa. No primeiro mandato de Fernando Henrique Cardoso, diziam “fora FHC”, e ele se reelegeu (em 1998). Lula quase caiu com o mensalão. Se não houvesse a possibilidade de reeleição, Lula teria caído. Voltar ao mandato de cinco anos é voltar à Constituição de 1946, que foi testada e não deu certo.

O senhor diz que não existe uma elite nacional no Brasil. Por quê?
Todo mundo que está no Brasil está de passagem, quem está em Brasília está de passagem. Alguns ficam, como o Sarney (José Sarney, senador e ex-presidente da República), que está há 60 anos no poder, ganhou de Dom Pedro II em tempo no poder. Mas é caso isolado, não se pode dizer que no Brasil exista alguém que represente politicamente uma estabilidade nacional. O país é muito difícil de governar.

Como as elites se organizaram no país?
A partir da Revolução de 1930, o Brasil deixou de ser uma elite de proprietários de terras e passou a ser um país que tentou e tenta ser cada vez mais moderno e civilizado. No período colonial e no Império, o Brasil teve uma unidade nacional entre as várias províncias baseada, do ponto de vista econômico, na escravatura. Os historiadores nunca disseram, ou, quando disseram, foi de forma envergonhada, que a escravatura negra foi uma das razões para o Brasil ter se mantido unido como nação, ao contrário da América espanhola.

A escravidão ajudou a manter o país unido?
No Brasil, o regime da escravatura foi um regime econômico que fez as elites locais permanecerem unidas junto a um modelo de império com um governante que fosse um imperador. Esse modelo veio à ruína depois da abolição da escravatura, e o Brasil quase se desmilinguiu com a República.


Perto do poder: depois de atuar nas campanhas presidenciais do PT, foi advogado-geral da União no governo Lula

Voltando à reeleição, ela está inserida no debate da reforma política. Alguns candidatos dizem que é a reforma das reformas. O senhor acredita nisso? Que reforma deve ser feita?
Os partidos políticos surgiram no século 19. No Brasil, os partidos são o único meio de acesso ao poder, e são os partidos que dizem em quem nós podemos votar. Vivemos em uma democracia ou em uma partidocracia? Os partidos políticos representam a sociedade ou não? Penso que as manifestações de junho de 2013 indicaram uma insatisfação da sociedade com os meios tradicionais de representação, ou seja, numa época em que os partidos se configuravam entre direita e esquerda, naquela clássica divisão marxista de lutas de classe, isso está superado.

Os partidos precisam se reciclar?
No mundo, você tem pessoas que, ao mesmo tempo, são contrárias ao aborto, mas a favor do divórcio, ou pessoas favoráveis ao livre mercado, mas contrárias à liberação das drogas e do jogo ou do casamento gay. Quem representa as nossas ideias? Os partidos perderam completamente aquele veículo de ser a representação da sociedade.

E qual seria o caminho?
Não podemos olhar o retrovisor. Temos de olhar o futuro, essa nova maneira de se comunicar, as relações de uma sociedade online. Temos de pensar em outra democracia. Se quisermos encaixar essa nova sociedade nas caixinhas dos conceitos sociológicos anteriores, vamos estancar os meios de possibilidade de a sociedade extrapolar os seus desejos, e isso gera revolução.

O Brasil tem 32 partidos políticos. É um número adequado para o país?
De maneira alguma, pois não existem 30 ideologias. Os partidos políticos são mandados por suas cúpulas. Temos de rediscutir isso. A sociedade brasileira dizia que, na época do governo militar, você não poderia eleger diretamente, então fomos à praça pública, Diretas Já, queremos eleger nosso presidente. Quem escolhe quem é candidato à Presidência? Dizia-se antigamente que eram os militares. E hoje, quem escolhe?

Os partidos políticos nos oferecem candidatos.
Vocês que estão dizendo (risos). Quem escolheu a Dilma candidata em 2010? Foi o Lula. Quem escolheu Aécio, Serra ou Alckmin? Meia dúzia do PSDB. Quem escolheu Eduardo Campos? Ele próprio.

Qual a melhor forma de escolher um candidato?
Não estou aqui para dar respostas, estou aqui para realmente chocar e dizer o seguinte: temos de reformular a nossa democracia para o futuro. Não é de hoje que os agrupamentos no Congresso são muito menos por partidos e muito mais por segmento de interesse. Bancada ruralista, bancada evangélica, bancada católica, bancada de trabalhadores, bancada de banqueiro, da OAB, dos médicos etc. Isso já existia e cada vez vai ser mais assim. Temos de repensar: a sociedade quer ser representada de forma segmentada?

Mas qual seria o fórum para essa discussão? O Congresso?
Toda a sociedade. O Congresso é uma representação parcial da sociedade. Temos de encontrar uma nova forma de pensar a sociedade. Não se trata de uma Constituinte. Aliás, sou contra uma nova Constituinte. Sou a favor de um debate nacional, talvez com uma maior prática de referendos e plebiscitos, porque em uma sociedade online isso vai naturalmente ser demandado, senão o povo vai sair às ruas. Os partidos têm de se adaptar a isso, ou eles vão ser superados por outros movimentos.

As agendas mais progressistas no país têm encontrado espaço e palavra final no STF. Já o Congresso critica o Supremo por uma suposta vontade de querer legislar. A crítica está correta?
O Judiciário é um poder eunuco, é um poder sem desejo. O Judiciário não age de ofício, ele só age provocado. Então, como falar que o Judiciário tem ativismo? Aos poucos, desde 1988 o Judiciário no Brasil assume o papel do Judiciário em uma real democracia como foi nos EUA, o de ser o poder moderador. No Brasil imperial, o poder moderador era o imperador, a nobreza fazia o papel de ser a unidade da nação, a defensora da unidade das elites locais e de árbitra dos conflitos. Com o fim da escravidão, veio a República, e o Brasil só não se desmilinguiu porque havia os militares. Até 1964, os militares tomaram conta desse poder. Quando havia crise, eles vinham, intervinham e saíam. Qual foi o grande erro? Em 1964, eles tomaram gosto e optaram por ficar, em vez de fazer a intervenção cirúrgica e sair. O Brasil e eles pagam um preço enorme.

Hoje, o poder moderador é realizado, de fato, pelo Judiciário?
A redemocratização trouxe de volta aquilo que estava previsto para 1889: quem faz o poder moderador de uma sociedade é uma Suprema Corte. Então, quando você fala de ativismo judiciário hoje, você fala daquilo que há 200 anos nos EUA é aceito pela sociedade. Nós moderamos os conflitos entre as unidades da federação, entre os poderes, tratamos das questões culturais. Quem diz se pode ou não pode abortar nos EUA não é o parlamento, é a Suprema Corte, assim como nós dissemos aqui. São questões que a sociedade brasileira nunca vai resolver.

Discussões como o aborto passam longe de um acordo no Congresso.
Os candidatos têm eleitores nos dois lados da discussão, é um empate que não se resolve. Quem tem de decidir e destravar é o Judiciário. Isso não é ativismo, é um desbloqueio de empates de disputas que há na sociedade.

O senhor foi advogado do PT, trabalhou com José Dirceu e depois foi advogado-geral da União no governo Lula, que o indicou para o Supremo. Em algum momento, pensou em se declarar impedido de julgar o mensalão?
Tive histórico no PT com muito orgulho, consta no meu currículo. De jeito nenhum me senti pressionado. Quando você assume o posto de ministro do Supremo, tem toda a independência para julgar.

Pessoalmente, o senhor ficou tranquilo após sua participação no julgamento?
Tranquilo. Um juiz não pode ter desejo. Se o juiz quer ter desejo, ele tem de deixar a magistratura e fazer política. O juiz julga de acordo com a Constituição e as leis. Pessoalmente, gostaria muito que no Brasil não tivesse o direito de greve para o servidor público, mas está na Constituição. Acho um absurdo que o meu servidor no TSE faça uma greve e ainda venha reivindicar a remuneração, mas não posso ignorar o direito previsto na Constituição.


Posse no STF: em 2009, posando para fotos com Lula e o irmão, José Eduardo, portador de síndrome de Down.

O senhor tomou posse no STF aos 41 anos, jovem para um ministro. Pensa em se aposentar mais cedo ou pretende ficar na Corte até a aposentadoria compulsória, aos 70 anos?
De jeito nenhum. Não tenho medo de ser juiz. Gosto de ser juiz. Espero ir aos 110 anos (risos). Espero que o Congresso aprove emenda que transforme no Brasil a vitaliciedade humana e não limitada, assim como é nos EUA, que a pessoa vai até morrer.

O primeiro turno das eleições ocorre em 5 de outubro. Qual a expectativa do senhor? 
São as eleições mais tranquilas que nós estamos vivendo, o Brasil mostra maturidade democrática. Temos condições de ter as melhores eleições.

Está sendo uma campanha que o senhor considera cara?
Acho que não. Do ponto de vista ostensivo, as eleições estão menos caras, não vejo tanta publicidade.

Nas eleições atuais, vencerá quem tem mais recursos ou quem apresentar as melhores propostas?
Hoje, se elege quem tem mais recursos. Quem tem mais recursos tem mais condições de aparecer.