Marcelo Neri – Pretendo estudar a renda dos mais ricos

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Autor(es): Isabel Clemente
Época – 08/10/2012
 

O economista conhecido por identificar a ascensão da nova classe média quer agora entender melhor a desigualdade no Brasil

ALTO DO MORRO DOS CABRITOS, FAVELA PACIFICADA NO RIO DE JANEIRO, É UMA DAS VISTAS prediletas do economista Marcelo Neri. Aos 49 anos, recém-empossado na presidência do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ele não admira apenas a beleza cênica do mirante. Mas a peculiar mistura de extremos de luxo e pobreza. Por 12 anos, à frente do Centro de Políticas Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV) do Rio, mediu a queda nos índices de desigualdade do país e a ascensão social dos mais pobres. Foi um dos que identificaram e batizaram a nova classe emergente do país. Agora no Ipea, diz que quer investigar dois mistérios: a renda verdadeira dos mais ricos e por que os brasileiros poupam tão pouco.

Nos últimos dez anos, 23 milhões de brasileiros saíram da linha da pobreza. Em que década o país está entrando agora?

Marcelo Neri – Se você reparar, as décadas não são muito gregorianas. A da democratização começou em 1984, a da estabilização em 1994. Em 2004, a volta do crescimento com geração de emprego deu início à década da inclusão social e, puxando um pouco a sardinha para minha brasa, da nova classe média. Num certo sentido, a nova década começará em 2014. E a meta principal do governo federal é superar a pobreza. Só que, desta vez, levando o Estado aos pobres, com educação de qualidade, microcrédito e infraestrutura. O desafio é dar poder a eles.

Época – A desigualdade brasileira caiu pelo índice deGini, usado mundialmente para comparar a renda dos mais ricos e mais pobres. Nesta nova década, seria o momento concentrar em indicadores que não avançaram tanto, como na educação?

Neri – A educação no Brasil continua ruim. Mas está menos ruim do que era, como o índice de Gini. Nossos indicadores de desigualdade, informalidade e educação ainda são inaceitáveis, mas a taxa de progresso é forte. Concordo que o índice de Gini esconde alguns problemas. Mas ele revela que, na última década, a renda dos 10% mais pobres cresceu 91% e a renda dos 10% mais ricos aumentou 16%. A gente ainda não olhou para isso com os devidos cuidados.

ÉPOCA – O aumento de 16% na renda dos 10% mais ricos parece pouco para explicar a explosão do consumo de luxo no Brasil. Até que ponto podemos confiar num índice feito a partir de pesquisas que se baseiam na renda declarada?

Neri – É um bom ponto. As pesquisas sobre renda domiciliar funcionam melhor para os pobres. Os mais ricos podem ficar constrangidos em declarar sua renda verdadeira. Mas a metodologia atual do índice de Gini permite uma comparação internacional. Com ele, conseguimos ver que estamos em 172 lugar no mundo em termos de desigualdade. Pretendo trazer para o Ipea uma linha de pesquisas baseadas em dados do Imposto de Renda, uma tendência lá fora. Com eles, você pega a renda dos mais ricos e nâo fica esperando que as pessoas contem quanto ganham.

É claro que não entraremos no sigilo fiscal de ninguém. Nos Estados Unidos, esse tipo de pesquisa revelou que os 10% mais ricos têm metade da renda do país. Isso equivale ao ápice da nossa desigualdade em 1989, na hiperinfiação. Não acredito que o levantamento com o Imposto de Renda aqui mude muito nosso índice atual de desigualdade. Mas vamos pesquisar.

 

ÉPOCA – A crise pode empobrecer a nova classe média?

Neri – O Brasil é uma maquete do mundo. A desigualdade entre países é tão grande quanto a nossa interna. E vem caindo também loucamente. A nova classe média brasileira não tem dois carros e dois cachorros como a americana, mas tem dois filhos, o que é importante porque dá sustentabilidade ao crescimento. Há um paradoxo no Brasil. A renda das pesquisas domiciliares cresce bem mais que o PIB. Até agosto de 2012, a renda real per capita das seis regiões metropolitanas cresceu 4,6%. A previsão do PIB para o ano é de 1,6%. Uma explicação possível é que o desemprego baixo e a formalidade em alta estejam amortecendo a crise. Emprego formal dá FGTS e seguro-desemprego. Por isso, acredito que a classe média siga prosperando apesar da crise. Existem duas visões um pouco esquizofrênicas, como se a população estivesse num mundo e o PIB em outro. O presidente Emílio Garrastazu Médici (que governou de 1969 a 1974) dizia que o povo ia mal e o país ia bem. Agora o povo vai bem, e a economia mal.

 

ÉPOCA – O Bolsa Família perde relevância num país menos desigual?

Neri – A queda na desigualdade graças ao Bolsa Família foi de 13%. Não acho que o ciclo diminuiu. Por dois motivos. Primeiro, por ser uma plataforma de serviços. O governo federal incentiva parcerias com Estados e municípios. Rio, Distrito Federal e Minas já têm. São programas baratos que ficam de pé em pouquíssimo tempo. Aqui no Rio, a gente desenhou um programa, na FGV, o Renda Melhor, que atende hoje 1 milhão de pessoas no Estado, com benefícios que variam de R$ 30 a R$ 300. Segundo ponto: o custo-benefício do Bolsa Família é 0,5% do PIB. De graça. Como a meta agora é superar a pobreza, não está claro que o impacto tenha acabado.

 

ÉPOCA – O senhor sempre criticou um sistema de benefícios previdenciários que dá mais aos idosos do que às crianças. Num país que envelhece, essa desproporção tende a aumentar?

 Até há pouco tempo, a renda dos idosos crescia mais. Mas isso está mudando. O governo aumentou o número de crianças atendidas no Bolsa Família, incluiu a gestante e criou o Brasil Carinhoso, que reduziu em 40% a pobreza nas famílias com crianças na faixa de 0 a 6 anos. A queda na desigualdade foi fantástica. Podíamos ter feito mais. A alta da carga tributária atrapalhou. Roubou crescimento. Mas sou otimista, porque as pesquisas mostram que 76% do crescimento da renda no Brasil foi produzido por trabalho remunerado, e não veio de benefícios previdenciários ou sociais. Além disso, 58% da queda na desigualdade também foi efeito do trabalho. Quando você tem empresas querendo contratar, mesmo com os custos trabalhistas, é um sinal e tanto. Tem outro ponto: pergunte ao brasileiro o que ele acha da vida dele.

 

ÉPOCA – A felicidade do brasileiro não é cultural?

Neri – Pode ser. Por cinco vezes consecutivas, o brasileiro é o primeiro no ranking da expectativa de felicidade futura. Quando questionados sobre que nota daríamos para a vida em cinco anos, estamos em primeiro lugar entre 158 países pesquisados. A economia é a ciência triste. Como ela olha para um povo feliz? Não existe nenhum país do mundo onde a felicidade presente seja menos sensível a melhoras substantivas e reais, como acesso a bens. O brasileiro se acha o cara”. É difícil para os economistas entenderem isso sem fatos.

 

ÉPOCA – Que aspectos da sociedade precisam ser olhados com a mesma lupa que o senhor pretende dirigir aos ricos?

Neri- A poupança das famílias. A gente não sabe nem qual é. Fora das contas nacionais, não há estudos sobre isso. É preocupante porque, se tudo der certo, olha o que acontecerá. A população idosa cada vez maior não poupa. A taxa de juros, um prêmio para a poupança, deve continuar caindo. Com programas sociais, o incentivo não é poupar contra as incertezas. A tendência é de queda na poupança. O povo brasileiro precisa aprender a guardar dinheiro. Outro assunto é microcrédito. A cena que eu tinha na cabeça era um país ficando mais igualitário, com pequenos negócios prosperando. Não é o que está acontecendo. O emprego formal está subindo porque as empresas estão ficando maiores, o que não é ruim porque são mais sofisticadas, disputam no mercado externo. Mas eu queria ver mais empreendedorismo na base.