Expansão fiscal é uma das questões preocupantes

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Autor(es): Por Sergio Lamucci | De Washington

A expansão dos gastos públicos, o comportamento do crédito e a alta dos preços dos imóveis no Brasil preocupam a economista Carmen Reinhart, professora da Universidade de Harvard. Para ela, num cenário com juros baixos nos países desenvolvidos e preços de commodities em níveis ainda elevados, o país precisa tomar cuidado para não tratar “choques favoráveis como se fossem permanentes”.

“Os aumentos dos gastos são totalmente pró-cíclicos agora. Evitar o caráter pró-cíclico da política fiscal neste momento é algo de grande importância”, diz Reinhart. Segundo a economista, o país não está próximo de uma crise, mas essas questões precisam ser monitoradas. Com a política monetária expansionista nas economias avançadas, é necessário lidar com grandes fluxos de recursos externos.

Usar controles de capitais faz sentido, mas não há uma “bala de prata” para tratar desse problema, afirma Carmen, que virá ao Brasil para participar do 24º Congresso Brasileiro do Aço, que ocorre nos dias 8 e 9 deste mês no Rio, promovido pelo Instituto Aço Brasil. “Quando você está importando a política monetária expansionista de outros países e não está distante do pleno emprego, há um risco de aquecimento excessivo, um risco inflacionário”.

Carmen acredita que a política monetária continuará expansionista por um bom tempo nos países desenvolvidos, o que significa que os emergentes terão de se habituar a grandes fluxos de capitais. Além de atividade econômica seguir fraca, as economias avançadas têm outro incentivo para manter os juros no chão, num cenário de elevado endividamento do setor público, diz ela. “Quando há um excesso de endividamento, eles sempre terminam com transferências de poupadores para devedores. Juros reais negativos nos Estados Unidos são um imposto sobre os detentores de títulos”.

Nas últimas semanas, um estudo escrito em 2010 por Carmen juntamente com Kenneth Rogoff, de Harvard, esteve no centro de uma grande polêmica. Em “Growth in a time of debt”, os dois analisam dados de 44 países ao longo de 200 anos, concluindo que níveis elevados de endividamento público – com dívida bruta igual ou superior a 90% do Produto Interno Bruto (PIB) – estão associados a taxas de crescimento muito baixas. Em 15 de abril, economistas da Universidade de Massachusetts, em Amherst, publicaram um trabalho criticando o estudo de Carmen e Rogoff, apontando um erro numa planilha de Excel, “exclusão seletiva” de dados disponíveis e ponderação não convencional das estatísticas, que teria levado a “erros sérios” nas conclusões a respeito da relação entre dívida e crescimento.

Carmen e Rogoff reconheceram o equívoco na planilha de Excel, mas rechaçaram as outras acusações. Em artigo publicado no “The New York Times” na semana passada, os dois divulgaram uma extensa defesa, dizendo que não só a pesquisa, mas também as credenciais e a sua integridade, foram furiosamente atacados nos jornais e na televisão. O fato de o estudo ter sido várias vezes usado para justificar políticas de austeridade fiscal ajuda a entender o tamanho da polêmica. Reinhart falou ao Valor em 12 de abril. O jornal pediu que ela comentasse as críticas ao seu trabalho, o que não ocorreu até o fechamento desta edição.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Valor: Como está a recuperação da economia americana?

Carmen Reinhart: Recuperações de crises financeiras não seguem padrões normais de ciclos de negócios. Em 2008, eu e Kenneth Rogoff escrevemos que o processo de recuperação tenderia a ser modesto, em grande parte porque uma recessão causada pela crise financeira atingiu de modo importante o mercado imobiliário e a indústria da construção de um modo que o ciclo de negócios não faz. Num paper que escrevi com o meu marido, Vincent Reinhart, em 2010, analisando 15 graves crises bancárias depois da Segunda Guerra Mundial, o desemprego recuperou o nível anterior ao da crise apenas depois de dez anos. Na década seguinte a crises graves, as economias avançadas tiveram taxas de crescimento em média 1% a 1,5% mais baixo do que na década anterior à crise. Eu não estou surpresa com a profundidade, a extensão e a fraqueza da atividade econômica. Não é um cenário de recessão, mas nós estamos falando de crescimento abaixo da tendência.

Evitar o caráter pró-cíclico da política fiscal neste momento é algo de grande importância

Valor: A economia, então, vai demorar para retornar à tendência?

Reinhart: É exatamente isso o que estou falando. E a melhora na taxa do desemprego tem muito a ver com a queda na taxa de participação na força de trabalho, não porque ocorreu uma criação significativa de empregos. A taxa de participação está despencando. Eu sou uma das consultoras do Escritório de Orçamento do Congresso, e uma das últimas discussões que tivemos é quanto do desemprego se tornou estrutural. Se você olhar para os Estados Unidos, houve um aumento dramático da fatia das pessoas que recebem seguro por invalidez. Apenas uma pequena parcela dessas pessoas volta ao mercado de trabalho. Em relação à situação europeia, os EUA estão ainda em melhor forma, mas não é o caso de apostar que o crescimento americano vai voltar para o que era na década antes da crise.

Valor:Alguns economistas como Paul Krugman dizem que, se houvesse uma política fiscal diferente, o crescimento seria maior. O que a sra. acha dessa avaliação?

Reinhart: Eu não concordo com isso. Acho que ele está errado. Você não resolve um problema de dívida acrescentando mais dívida, que é exatamente o que ele está sugerindo. Uma das áreas em que nós atrasamos significativamente é a redução da dívida. E eu não me refiro apenas à questão fiscal, mas também ao setor privado.

Valor: Há muita desalavancagem a ser feita?

Reinhart: A desalavancagem perdeu fôlego. Nos EUA, as empresas não financeiras estão em boa forma. Não há um problema de endividamento, elas têm muita liquidez. No entanto, a dívida das famílias, que atingiu o pico mais alto em 2008, um pouco acima de 100% do PIB, caiu um pouco, ficando um pouco acima de 90%, e então parou. Em 1982, quando nós tivemos uma recessão muito grave nos EUA, mas uma recuperação realmente robusta, houve uma retomada forte do consumo das famílias, dos gastos de consumo com duráveis e não duráveis. Naquele período, a dívida das famílias era de cerca de 45% do PIB. As famílias continuam com um excesso de endividamento. Outra questão é que os preços de imóveis nos EUA se estabilizaram, em algumas áreas há sinais de melhoras, mas nós estamos muito abaixo dos picos atingidos em 2005 e 2006. O refinanciamento de hipotecas tem sido um processo lento e doloroso. O problema do balanço das famílias continua lá, e está limitando o crescimento. Quando você vê pesquisas que perguntam porque as empresas não estão investindo mais e empregando mais, isso tem a ver com a percepção de que a demanda final vai ser fraca. Isso afeta muito a recuperação. Estou descrevendo um cenário com a economia patinando, não de recessão ou de depressão, em que as taxas de crescimento ainda não estão próximas das médias de longo prazo.

Valor: A sra. acredita num crescimento na faixa de 1,5% a 2,5%?

Reinhart: Acho que a taxa de crescimento deve ficar na casa de 2%. Não acredito que a economia americana vai atingir 3% numa base sustentável.

Valor: Por que não é uma boa ideia tentar impulsionar o crescimento com estímulos fiscais de curto prazo?

Reinhart: Eu sou muito keynesiana, mas políticas keynesianas, pelo que eu entendo, têm a ver com ações contracíclicas. No auge da crise, em 2008 e 2009, quando se falava de estímulos fiscais, a minha tese era de que quanto mais estímulos, melhor. Aquele era o momento de ter um grande estímulo fiscal e monetário. Mas já se passaram alguns anos depois do auge da crise. Isso não é política contracíclica.

Valor: O que a sra. acha da política monetária americana, com os juros próximos de zero e o afrouxamento quantitativo?

Reinhart: Eu posso falar do ponto de vista dos EUA e também do ponto de vista do Brasil e outros mercados emergentes. Nos EUA, você pega o cenário que eu acabei de traçar. Um excesso de endividamento, não apenas público, mas privado; um crescimento que não é um desastre, mas é algo patinando; no mercado de trabalho, não há uma grande recuperação na criação de empregos e as pressões inflacionárias estão sob controle. Nesse ambiente, o Fed nos diz que eles querem manter por um período indefinido de tempo uma política em que os juros vão ficar nos atuais níveis.

Valor: Eles estão certos?

Reinhart: Acho que sim. Não sempre pelos motivos que eles dizem, deixe-me explicar. Quando há um excesso de endividamento, eles sempre terminam com transferências de poupadores para devedores. Juros reais negativos nos EUA são um imposto sobre os detentores de títulos. Eu tenho trabalhado no assunto da repressão financeira. Com a repressão financeira e juros reais negativos, o governo está liquidando a dívida. Juros reais negativos são um imposto sobre os detentores de títulos. Isso facilita o financiamento na escala atual.

Se os preços de commodities não estivessem onde estão, como estariam as contas externas?

Valor: E quais as implicações para os mercados emergentes?

Reinhart: As implicações para os mercados emergentes são muito diferentes. Com juros nos países desenvolvidos mais ou menos onde estão, os problemas dos fluxos de capitais para os países emergentes vão continuar a ocorrer. As pessoas estão buscando rendimentos mais elevados.

Valor: O ministro da Fazenda, Guido Mantega, reclamou muitas vezes de guerra cambial. Ele está certo?

Reinhart: Claro que ele está reclamando. Do ponto de vista dos Estados Unidos, uma política monetária expansionista faz um sentido enorme. Mas para um país que cresce mais que os EUA e está com capacidade instalada mais elevada, a política monetária expansionista nos EUA significa que haverá fluxos de capitais e que a moeda tenderá a valorizar. Agora há também o Japão, que começou com uma política monetária muito mais agressiva para acabar com a deflação, o que faz sentido do ponto de vista deles.

Valor: O Banco do Japão vai ser bem-sucedido em sua tarefa de evitar a deflação?

Reinhart: Essa é uma questão em aberto. No passado, quando o iene começou a se desvalorizar com força, eles não perseguiram uma política monetária relaxada tão agressivamente como seria necessário para produzir inflação.

Valor: E a situação da Europa?

Reinhart: Não acho que já houve o fim da reestruturação das dívidas. A Espanha e a Irlanda têm grandes volumes de dívida bancária sênior, ainda carregadas a valor de face. Acho difícil ver uma normalização das economias desses países sem alguma baixa (write offs) dessas dívidas. Nem estamos entrando em questões de dívida soberana. A repressão financeira, que tem a ver com a criação de audiências cativas para a dívida, está voltando rapidamente. Há pouco tempo a Espanha aumentou a parcela que os fundos de pensão precisam ter de títulos do governo espanhol em suas carteiras.

Valor: Como países como o Brasil e outros emergentes devem reagir a essa política de juros baixos e grande liquidez criada pelo afrouxamento quantitativo?

Reinhart: Em 1993, escrevi um paper com Guillermo Calvo e Leonardo Leiderman sobre o problema dos fluxos de capitais. Ele basicamente diz que não há balas de prata. Quando você tem grandes fluxos de capitais, se você permite a valorização do câmbio, surgem problemas de competitividade, de conta corrente. Se você tenta lutar contra a valorização, por meio da intervenção, acumulando reservas, é algo que também é custoso. Primeiro, é improvável que você consiga esterilizar a intervenção completamente. Com isso, surge a questão de booms de crédito e de preços de ativos. Não há balas de prata. Acho que países, incluindo o Brasil, estão se movendo na direção de usar controles de capitais.

Valor: O Brasil adotou algumas medidas de controle de capitais, medidas macroprudenciais e acumulação de reservas para lidar com os fluxos de capitais.

Reinhart: Vamos chamar as coisas pelos seus nomes. Está na moda chamar de medidas macroprudenciais, mas elas são controle de capitais. É um modo de lidar com fluxos de capitais grandes e persistentes.

Valor: O Brasil deve tentar combater parte desses fluxos de capitais com controles de capitais?

Reinhart: Sim, eu acho. As sementes das crises aparecem em geral nos bons tempos. Uma coisa que me preocupa quando começo a ver governos começando a tratar choque favoráveis como permanentes. Isso se reflete nos gastos. Os aumentos dos gastos são totalmente pró-cíclicos agora. Evitar o caráter pró-cíclico da política fiscal neste momento é algo de grande importância. Nós vimos um aumento dos gastos fiscais, inicialmente um estímulo fiscal em resposta à crise, algo muito apropriado. A questão é que os gastos subiram, mas não recuaram novamente. Se você olhar a história, os preços de commodities podem ter períodos prolongados de alta, mas quando eles começam a cair, eles podem expor muitas vulnerabilidades tanto nas contas fiscais como nas contas externas. Esse é o motivo pelo qual eu insisto que essas vulnerabilidades iniciais precisam ser monitoradas. E, dado o que eu disse, que não acredito que os EUA, a Europa ou o Japão vão reverter em breve a política monetária, é necessário ver como lidar com os juros baixos no cenário internacional por um bom tempo. Quando você está importando a política monetária expansionista de outros países e não está distante do pleno emprego, há um risco de aquecimento excessivo, um risco inflacionário.

Valor: Como a sra. vê a situação brasileira?

Reinhart: Com eu disse, a expansão fiscal é uma das coisas que me preocupam sobre o Brasil, que o país comece a tratar alguns dos fluxos como permanentes. Isso é sempre algo perigoso. Nós temos agora um cenário internacional favorável não apenas em termos de juros, mas também de preços de commodities. Se os preços de commodities não estivessem onde estão, como estariam as contas fiscais e as contas externas? Em 2008, o Brasil e a América Latina foram capazes de enfrentar a crise com solidez. Em parte isso se deveu ao fato de que o Brasil e outros países da região, assim como na Ásia, tinham se desavalancado, tanto doméstica como externamente. O principal é que houve uma mudança de dívida externa para mais dívida doméstica. Isso ajudou muito, porque naquele período de turbulência, em 2008 e 2009, ninguém estava questionando a solvência do Brasil e do México, por exemplo. Os países estavam sendo duramente atingidos, com queda das exportações e a desvalorização das moedas, mas ninguém questionava a solvência. E, seis anos depois, o crédito doméstico tem crescido bastante rápido no Brasil, ainda mais rapidamente no Peru. Há aumentos significativos nos preços de imóveis.

Valor: A sra. está preocupada com o aumento do crédito e os preços de imóveis no Brasil?

Reinhart: É uma linha tênue entre o que é algo saudável e o que é aquecimento excessivo. O que eu estou dizendo é que eu não tinha dúvida em relação ao equilíbrio externo e interno que o Brasil e outros mercados emergentes tinham em 2008. Não é onde eles estão agora. É algo a ser monitorado. Não estou dizendo que há uma crise, mas é algo a ser monitorado.