SERVIDORES: INGERÊNCIA POLÍTICA OU AUTONOMIA TÉCNICA?

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A ingerência política em órgãos técnicos do serviço público não é nova, mas a prática ressurge com mais força em anos eleitorais, quando governos ou políticos, para agradar suas bases, querem ter o poder de selecionar dados e indicar metodologias de pesquisa sobre aquilo que irá atender unicamente os seus interesses. Se os números contrariam os donos do poder, o desavisado que os divulgou corre o risco de perder o cargo. Josemilton Costa, secretário-geral da Confederação dos Trabalhadores no Serviço Público Federal (Condsef) – representa 80% do funcionalismo federal -, ressaltou que, em períodos específicos, a pressão aos trabalhadores chega às raias do absurdo.

“Nos últimos anos, houve um aumento jamais visto dessas estratégias. Temos conhecimento de tentativas de rachar a autonomia de importantes instituições como IBGE, Ipea, Incra e nas agências reguladoras. É um retrocesso do governo Dilma para impedir que algumas informações venham a público e comprovem ineficiência e também para dificultar que as pessoas exerçam suas atribuições e ao mesmo tempo se sintam ameaçadas para reivindicar seus direitos”, destacou Costa.

Protestos de lideranças sindicais se acumulam, contra o aparelhamento ideológico. Ontem, o Sindicato Nacional dos Servidores das Agências Reguladoras (Sinagências) publicou nota de repúdio ao artigo 101 da Medida Provisória (MP 627/2013), incluído pelo relator, deputado Eduardo Cunha (PMDB/RJ), que alivia multas cobradas aos planos de saúde. Segundo o Ministério da Saúde, com base em cálculos da Agência Nacional de Saúde (ANS), a economia às empresas chega aos R$ 2 bilhões.

“Na verdade, a MP é um escândalo do processo legislativo, uma deformação criminosa, que precisa ser corrigida imediatamente. Um retrocesso nas relações entre agência e ente regulado, em detrimento do cidadão e do interesse público”, atacou a nota do Sinagências. Segundo João Maria Medeiros, presidente do Sindicato, a expectativa é de que a presidente Dilma vete esse artigo. “Se não vetar, é porque é conivente”, reiterou.

A hipótese de conivência não está totalmente afastada, no entender de Cleber Ferreira, presidente da Associação dos Servidores da ANS (Assetans). “A história ficou muito mal contada. Eduardo Cunha, embora da base aliada, não disse quem sugeriu o remendo. Tentou se justificar com o argumento de que tentava evitar abusos e corrupção na cobrança de multas. A questão é como esse item foi parar em uma MP que não tem nada a ver. Justamente ele, que beneficia operadoras de planos de saúde, grandes financiadoras de campanhas políticas”, questionou Ferreira.

Em nota, Eduardo Cunha informou que não é verdade que a MP tenha qualquer anistia aos planos de saúde, pois a medida, se fosse aprovada, valeria somente a partir da data da sua publicação. “Se o governo, no momento do debate, se posicionasse contrário à emenda, eu, como relator, não a teria acolhido”, explicou Cunha. Ontem, também, os funcionários do IBGE, no Rio de Janeiro, fizeram uma paralisação de 24 horas. Segundo Susana Lage, presidente da Associação dos Trabalhadores (AssIBGE), mais de 500 servidores, do total de 700, aderiram ao movimento.

Nas superintendências em todo o país, funcionários fizeram atos de protesto, disse Susana. O motivo, afirmou, não foi apenas a tentativa de adiar a publicação da Pnad Contínua e de itens importantes sobre emprego e renda, sem consultar o corpo técnico. Mas o fato de políticos questionarem a metodologia das pesquisas e tentaram impor que passem a ser discutidas por governos atuais e próximos eleitos.

“Não fazemos pesquisa por encomenda”, disse Susana. Os servidores do IBGE vão se reunir na próxima quinta-feira (24) para decidir os rumos do movimento. A Associação protocolou pedido de reunião com a direção do IBGE e com a ministra do Planejamento, Miriam Belchior, para discutir quatro principais eixos de reivindicações: autonomia técnica; mais orçamento; concursos públicos para substituição do trabalho temporário em atividades permanentes; padrão salarial igual ao chamado “ciclo de gestão” (IPEA, Banco Central, CVM, entre outros).

Mais profunda

A ingerência política pode ter raízes mais profundas do que se imagina. “Lá, na concepção de algum projeto, é possível focar a máquina pública naquela direção que se deseja para blindar determinados interesses”, assinalou Rudinei Marques, presidente do Sindicato Nacional dos Analistas e Técnicos de Finanças e Controle (Unacon Sindical). Ele citou o exemplo do programa de fiscalização de verbas públicas criado em 2003.

“Para fiscalizar recursos de R$ 3 mil, em um simples município do interior, vão seis auditores, com prazo de três a quatro semanas para finalizar o trabalho. Porém, na fiscalização da Petrobras, não raro, são dois, para entregar o relatório em dias. Não seria esse um tipo de manipulação”, questionou. A manobra, às vezes, pode explodir no colo daqueles que desafiam a lógica dos poderosos de plantão.

Recentemente, Leonardo José Rolim, técnico admirado pelos colegas, foi defenestrado do cargo de secretário de Políticas de Previdência Social. E não apenas, dizem fontes ligadas ao governo, porque contrariou o ministro da Fazenda, Guido Mantega, ao divulgar que o rombo do INSS não iria cair R$ 9,8 bilhões em um ano (de R$ 49,9 bilhões, em 2013, para R$ 40,1 bilhões, em 2014). Ele também já estaria na mira do PMDB, que, embora aparentemente da base aliada, vem chantageando o governo para extrair vantagens, usando todo o tipo de sabotagem.

Os técnicos envolvidos nessas confusões nada republicanas falam do assunto com cautela. Cimar Azeredo, coordenador de Trabalho e Rendimento do IBGE, um dos 18 a entregar o cargo após a postergação compulsória da Pnad Contínua, fez questão de ressaltar que os cargos continuam às disposição, com o intuito de garantir o antigo calendário. Porém, o discurso de ingerência política, disse, é do sindicato. “O que houve foi um processo de tomada de decisão sem ouvir os técnicos”, simplificou.

Cimar contou que, desde sexta-feira, após reuniões com o Conselho Diretor do órgão, ficou acertado que um grupo que envolve várias diretorias vai apresentar um trabalho comprovando que é possível atender à solicitação dos parlamentares e manter a divulgação. Da mesma forma, a Associação dos Funcionários do Ipea (Afipea Sindical), que se declarou como “única instância legítima e autorizada para falar por todos os servidores”, negou com veemência o chamado aparelhamento do Ipea.

Em nota, a associação informou que o Ipea está sendo maldosamente apresentado como um órgão “aparelhado” politicamente. “Os que fazem tal acusação ignoram que o Instituto é um órgão integrante da estrutura do Poder Executivo Federal e que na maior parte dos seus 50 anos esteve vinculado à Presidência da República. Funciona, portanto, sob as diretrizes emanadas da alta direção do governo, de qualquer governo”.

O vice-presidente da Afipea, Ronaldo Coutinho Garcia, contestou, inclusive, as declarações do ex-presidente (1987-1988), Edson Nunes – após o órgão anunciar que havia se equivocado na divulgação dos resultados da polêmica pesquisa sobre violência contra a mulher – de que o instituto teria perdido o foco e se enveredado pela área social. “Ele, no mínimo, deve estar gagá. Em seu tempo, inclusive, o Ipea teve uma das mais respeitadas equipes de política social do país”, destacou Coutinho.