Dieta forçada
A dependência do mercado financeiro para girar os papéis da dívida pública, ao lado do viés cadente da liquidez global do dólar, criou um raro consenso entre governo, oposição e economistas da esquerda à direita sobre a necessidade de o crescimento do gasto público ser desacelerado. É disso que trata a meta anual de superávit primário que está para ser anunciada. Ela define o naco do orçamento fiscal que será economizado para pagar parte dos juros da dívida pública.
A estimativa é que o governo Dilma Rousseff precise, para acalmar a pressão dos mercados, entregar um superavit de 1,8% a 2% do PIB – algo como R$ 100 bilhões, em número redondo, em relação ao Produto Interno Bruto deste ano, projetado em algo como R$ 5,1 bilhões. É pouco, comparado ao que o Tesouro pagou de juros ano passado, R$ 248,8 bilhões (representando 5,18% do PIB), e que será maior este ano devido ao aumento da Selic. E é muito, se o governo atender aos reclamos de agências de rating e do mercado (além, de modo velado, o Banco Central) para que a economia fiscal venha do gasto cortado, não de receitas atípicas (dividendos forçados de bancos federais, bônus de licitações etc.), que não impactam a demanda agregada.
O “muito” e o “pouco” não são, no caso, conceitos subjetivos, mas medidas precisas, além de impactadas pelas tendências de aumento do gasto acima da receita, no Brasil, e de redução das emissões, nos EUA, e do crédito bancário, na China. Liquidez menor do dólar abate o fluxo do hot money no mundo; China sem crescimento chinês (coisa de dois dígitos ao ano) desidrata a bolha de preço das commodities.
Tal pano de fundo não implica bem, como diz a crítica ao governo, aversão ao risco, significando fuga de capitais para mercados mais seguros, como os ativos em dólar nos EUA. Na verdade, as aplicações financeiras representam fundos tomados emprestados numa dada moeda com condições melhores de juros que em outros mercados. É o cenário de menos créditos para tais operações de arbitragem entre moedas e juros que já implica seu desmonte antes que se tornem proibitivas.
As economias emergentes estão no meio desse fogo, que será severo com as que têm financiado um bocado da demanda interna com capitais externos e déficit fiscal. Sem crescimento mais forte no Brasil, um naco do consumo flutua no vazio. Esse é o ajuste que está posto.
Gasto sobe no telhado
Vamos lá: o gasto público depende da receita tributária (função do ritmo do PIB); os déficits (fiscal e externo) e o estoque de dívida pública são condicionados pela disposição do mercado (cuja dinâmica resulta da Selic real, da liquidez e do risco) em bancá-los; essas três medidas começam a subir no telhado, ou já subiram. Conclui-se que o tamanho do gasto do governo não é mais condicionado pelo que o presidente e sua base de apoio desejam, mas pelo que podem fazer.
Alguns governos se adiantaram, tal como o BC fez ao aumentar juros antes que outros emergentes também o fizessem, mas um ajuste apenas monetário deixa sequelas sobre a economia. Um corte do gasto fiscal pode mitigar o ônus social do ajuste. A questão é o que cortar no orçamento federal, cujo grosso da despesa é mandatória em lei, em volume que faça diferença durante alguns anos, já que o problema do descompasso entre gasto e receita levará tempo para se ajustar.
Salário mínimo em risco
A “vítima” em vista, especialmente em artigos de economistas, é a formula do salário mínimo, que expira em 2015, mas há movimentos no Congresso para prorrogá-la. Ela soma a variação do PIB de dois anos antes à inflação em 12 meses. Como o crescimento econômico, até por causa do laxismo fiscal, baqueia desde 2011, o impacto do SM sobre o gasto público tem diminuído, apesar de expressivo. O aumento de 6,8% do SM este ano, frente ao de 2013, de 9%, permitirá ao governo economizar R$ 4,6 bilhões, segundo o economista Fernando Montero.
Isso representa 0,5% do total do gasto federal, estimado em R$ 914 bilhões na lei orçamentária. “Trata-se de um valor expressivo, mas não é isso que vai salvar as contas de 2014”, diz, sobretudo diante do excesso de despesas reais, estimado em R$ 50 bilhões.
Social banca 37% do país
O alerta de Montero é que, ainda que o fim da indexação do aumento do SM ao PIB implique uma economia fiscal “relevante e cumulativa”, de R$ 5 a R$ 6 bilhões ao ano, não é aí que está o busílis – nem em que Dilma seja mão aberta, acresce, ao menos comparado ao governo Lula.
O problema é mais o ritmo de expansão dos benefícios sociais que o valor médio pago. Em 2003, tais programas atenderam 38,3 milhões de pessoas. Em 2013, 75,6 milhões. O número dobrou em dez anos e já representa 37% da população, impelindo o consumo, mas não o PIB e a arrecadação. É essa conta que está ficando salgada.
171 à custa dos pobres
A imponência da política social é assídua nos discursos oficiais e nem a oposição a questiona. Mas nunca houve um balanço sobre qual a sustentação desses programas. Nem transparência. Como social estão do Bolsa Família de R$ 32 per capita à aposentaria de magistrados e altos funcionários, que pode passar de R$ 30 mil por mês.
Tal é o ponto de Montero. “Não minimizo a importância da indexação do SM para a inflação, a produtividade”, diz. “Mas não é o problema maior num país onde as pessoas se aposentam aos 50 anos; viúvos se casam aos 80 com mocinhas para legar a pensão; o gasto com seguro-desemprego só cresce, embora o desemprego seja o menor da história; paga-se abono com só um mês de trabalho; filha solteira de militar recebe pensão vitalícia [por isso, muitas só casam no religioso]; o gasto do setor público com juros vai a R$ 3,50/dia por brasileiro.” Não há PIB que chegue. Nem social que encubra tanta malandragem.