A elite dos servidores e a revolução do governo

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A elite dos servidores públicos brasileiros não é de fazer alarde — a não ser que seja chamada ao confronto, como na negociação salarial de 2012, quando recebeu, do Palácio do Planalto, a pecha de sangue azul do funcionalismo. Com os maiores contracheques do Executivo, do Legislativo e do Judiciário — vencimento médio inicial de R$ 15 mil —, esse pelotão desempenha funções cruciais, cujas falhas podem custar caro aos cofres do país e sérios problemas à população. Da administração das reservas internacionais, de US$ 375 bilhões, ao controle da inflação. Da gestão da dívida pública, de R$ 2 trilhões, aos subsídios a projetos de leis e a sentenças de tribunais. Tudo passa por esse grupo, que tem remunerações até 2.115% maiores que a base dos servidores.

Para especialistas, não há como prescindir de mão de obra tão qualificada. Todos os integrantes dessa elite — são mais de 50 mil — têm nível superior, muitos ostentam mestrados e doutorados e participam de treinamentos com frequência. “É natural que algumas carreiras tenham destaque e melhor remuneração”, diz Márcio Pochmann, professor do Instituto de Economia da Unicamp e ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). “Muitos desses servidores desempenham funções características de Estado, como a arrecadação de tributos, o controle da moeda e o sistema de segurança pública”, acrescenta.

Ele reconhece, porém, a necessidade de aperfeiçoar a máquina pública, adotando a meritocracia para premiar os melhores profissionais e reduzir a burocracia, de forma que os cidadãos tenham serviços de qualidade. De nada adianta ter servidores tão preparados, se o sistema não permite que todo o conhecimento que carregam seja usado em favor da população.

Para José Matias-Pereira, especialista em administração e finanças públicas da Universidade de Brasília (UnB), mesmo a elite do funcionalismo está sujeita ao modelo populista de gestão que impera no país, no qual os interesses públicos e privados se confundem. “Independentemente de ter capacidade técnica e receber bons salários, o esforço da elite dos servidores é engolido por uma máquina ineficiente e inchada”, destaca.

Também professor da UnB, o doutor em direito administrativo Mamede Said Maia Filho acredita que o pelotão de elite tem o importante papel de revolucionar a máquina pública. Além de ser mais bem preparada, ela ocupa funções estratégicas para o bom andamento da economia e para garantir os direitos dos cidadão previstos em lei. “São esses servidores que podem desatar os nós que mantêm o Brasil com um pé no atraso. Basta que tenham comprometimento real com o que fazem”, assinala. Felizmente, assinalam os especialista, há boas histórias para contar desses profissionais, como mostra o Correio no segundo capítulo da série sobre o funcionalismo público.

Fazendo a diferença
Sofrimento e aprendizado
O procurador-chefe do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), Alessandro Stefanutto, 42 anos, foi aprovado em um concurso para a autarquia em São Paulo em 1999. “Na época, não tinha noção da importância do INSS”, lembra. Depois de três anos no cargo, a vida dele sofreu uma reviravolta com o diagnóstico, aos 31 anos, de câncer nos testículos. “Achei que morreria”, conta. Após o tratamento, ele decidiu que mudaria tudo em sua rotina, inclusive a cidade em que morava. Diante de tanto sofrimento, era hora de dar um basta à tristeza e à solidão na maior cidade do país.

Nesse período, recebeu o telefonema de um colega que o convenceu a se mudar para Brasília. Além de um dia a dia menos estressante, estaria no coração do funcionalismo do país. Não se arrependeu. “Tudo deu certo. Adorei o clima e, aqui, tenho qualidade de vida. Também vi a oportunidade de prestar um serviço de qualidade à população, porque, na sede do INSS, tinha mais oportunidades de sugerir melhorias nos procedimentos”, conta. Atualmente, Stefanutto comanda a procuradoria da autarquia que defende os interesses da pasta e dos beneficiários nos tribunais. “Sinto-me gratificado”, enfatiza.

Para aproveitar a qualidade de vida que tem em Brasília, o servidor pratica ciclismo e pedala no Parque da Cidade pelo menos três vezes por semana, a partir das 5h da manhã. Após o exercício, segue direto para o INSS, onde usa o vestiário do prédio para tomar banho e se arrumar para o trabalho. “O dia que pedalo, sinto-me melhor. Cuidar da saúde é importante. Sei que, para desempenhar bem as atividades profissionais, preciso estar bem comigo mesmo”, afirma.

Compromisso com o patrimônio cultural

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Para quem é apaixonada por arquitetura, Ludimila Penna Lamounier, 40 anos, está no lugar certo. Na cidade que abriga a maior coleção de obras de Oscar Niemeyer e tem os traços de Lucio Costa, ela diz que encontrou o lugar ideal para exercer a profissão que escolheu. E melhor: está sendo muito bem remunerada como analista legislativa da Câmara dos Deputados.

Ludmila diz que se surpreendeu com a qualidade técnica dos colegas e a beleza do local. Atualmente, está envolvida na discussão do plano diretor da Câmara e com algumas reformas nos prédios e anexos. Ela reconhece, porém, as disparidades salariais no serviço público, que acabam criando um certo incômodo em muita gente. “Infelizmente, isso é uma realidade, mas faz parte do jogo, assinala”. A arquiteta assegura que, apesar de todas as contradições de Brasília, está completamente adaptada à cidade. “Gosto do plano urbanístico e da arquitetura, sobretudo da Catedral”, afirma.

O primeiro emprego de Ludmila na capital do país foi como perita em arquiteta do Ministério Público da União, em 2005, quando se mudou para o Distrito Federal. Lotada na Procuradoria-Geral da República (PGR, ficou encarregada de periciar locais considerados patrimônios culturais. Apesar de alcançar a tão sonhada estabilidade, ela não se acomodou e voltou a estudar.

Em 2011, foi aprovada para o cadastro de reserva do Senado Federal, o que a estimulou a continuar a conciliar os livros com o trabalho na PGR. O prêmio veio após dois anos de dedicação, quando passou para o almejado cargo de analista da Câmara dos Deputados. Desde de agosto de 2013, ela está lotada no departamento técnico da Casa e trabalha na área de formação. “É muito bom poder contribuir, de alguma forma, para que o serviço público seja melhor”, diz.

Armas contra a corrupção

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Inquieto com a rotina de trabalho no Tribunal de Contas da União (TCU), o auditor Alexandre Ziller, 54 anos, e outros colegas criaram o projeto Adote um Município, para que fosse possível fazer o controle social dos recursos públicos aplicados em saúde. Não é segredo para ninguém que o Brasil destina uma bolada em impostos pagos pela população a essa área crucial — no ano passado, o orçamento chegou a quase R$ 100 bilhões. Também ninguém questiona que boa parte dessa verba vai pelos ralos. “Portanto, nada mais justo do que dar transparência e ajudar a fiscalizar a aplicação dos recursos”, afirma.

Paralelo a esse projeto, ele participou da fundação do Instituto de Fiscalização e Controle (IFC), que também estimula a população a acompanhar os gastos com dinheiro do contribuinte. O Brasil é um dos campeões em arrecadação de tributos, mas é um dos piores na hora de devolver os recursos em forma de serviços públicos. Sendo assim, entende Ziller, é preciso dar instrumentos para que a população possa se basear para cobrar o que o governo não faz.

Para o auditor, engajar-se no trabalho de controle social foi uma forma de não enterrar o próprio talento na burocracia do funcionalismo, uma vez que é bem remunerado para prestar um bom serviço à população. “Também promovemos uma corrida de rua para chamar a atenção dos brasileiros dos prejuízos causados pela corrupção”, conta. Conforme Ziller, os conhecimentos adquiridos no TCU podem ser replicados por cidadãos interessados em acompanhar os gastos públicos.

Ele se queixa apenas da postura do governo em torno das negociações por melhorias nas carreiras do serviço público. No entender dele, os grupos mais organizados têm mecanismos de pressão para reivindicar direitos. Contudo, ele ressalta que tal situação não deve mudar as disparidades salariais que são gritantes na máquina federal. “O ideal é que haja maior valorização da mão de obra que tanto se dedica a contribuir para um país melhor “, diz.

Justiça deve se aproximar do povo

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O juiz federal Alexandre Vidigal, 55 anos, está convencido de que a Justiça precisa estar mais próxima do povo. Para ele, é preciso acabar com a visão de que somente negros e pobres são punidos neste ano. Essa mudança, acredita, começa pela redução da distância atual entre a população e a magistratura. Ele diz mais: “É preciso acabar com o mito de que juiz é marajá”.

Na avaliação dele, o salário diferenciado e as férias de 60 dias, por exemplo, são parte das prerrogativas e estímulos à carreira, uma vez que as responsabilidades de quem julga são enormes. “O juiz não bate ponto, mas trabalha pelo menos 11 horas por dia. E em nenhuma outra profissão, as pessoas são atendidas e desagradadas ao mesmo tempo”, ressalta. “Isso cria um desgaste enorme.”

Apesar da pesada rotina diária de despachos, julgamentos e reuniões, ele consegue encontrar tempo para espairecer. As maiores diversões estão nas corridas de rua, das quais participa há mais de 30 anos, e nas brincadeiras com carros de controle remoto. As mais de 100 maratonas completadas são lembradas com orgulho por meio de todas as medalhas guardadas no escritório. E, sempre que pode, coloca as miniaturas de carros, como o superpotente Audi R8, na pista.

Vidigal tornou-se o primeiro juiz federal brasiliense, ao ser aprovado, em concurso, com 27 anos. E sofreu preconceitos. O fato de ser muito jovem à época causava certa estranheza quando despachava com outros advogados ou até mesmo entre os colegas da magistratura. Mas a responsabilidade nunca foi um fardo. “Diferentemente das carreiras de Estado, em que os servidores públicos trabalham em estrutura de um poder, o juiz é o Estado. E ao mesmo tempo um ilustre desconhecido”, comenta. O melhor de tudo, acrescenta, é poder terminar o dia com a certeza do dever cumprido.

Por um Brasil mais justo

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O consultor legislativo da Câmara dos Deputados Paulo César Ribeiro Lima, 55 anos, participa ativamente de todas as discussões e elaboração de projetos sobre os setores de petróleo e gás, mineração e combustíveis. Doutor em engenharia de fluídos pela Universidade de Cranfield, na Inglaterra, ele diz que se sente útil nessas discussões, uma vez que passou mais de 15 anos na Petrobras. “Gosto da Câmara porque é a Casa em que são iniciadas as tramitações das propostas do Executivo. As discussões são ricas”, ressalta.

Como consultor legislativo, participou efetivamente da edição da medida provisória que tratou do biodiesel, do projeto de lei do novo marco do setor de petróleo e, agora, está debruçado sobre o novo Código de Mineração. “Tenho um forte comprometimento com o interesse público. Sinto que posso ajudar o processo legislativo e gosto do que faço”, completa. Para ele, esses temas são de extrema importância para o Brasil e precisam ser acompanhados com cuidado, porque envolvem as riquezas do país.

“Sempre tive o perfil de servidor público e nunca pensei em trabalhar na iniciativa privada. Quando o governo abriu mão do monopólio do petróleo, senti que deveria sair da Petrobras, empresa na a qual entrei em 1987”, comenta o engenheiro, que passou em primeiro lugar no concurso da estatal e trabalhou no centro de pesquisa do Rio de Janeiro. “Ainda quero contribuir muito para que tenhamos um país melhor, mais justo e moderno”, assinala.