Lei geral do concurso Público Federal flexibiliza análise de vida pregressa de candidatos:: Lucieni Pereira

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Em meio à onda de protestos que inclui na agenda medidas mais eficazes de combate a corrupção, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou o Estatuto do Concurso Público para a administração pública federal.
O Projeto de Lei nº 74, de 2010, foi aprovado com 76 artigos divididos em nove Capítulos que disciplinam regras gerais para os concursos públicos, ingresso de pessoa com deficiência, provas, avaliação de títulos, recurso administrativo, direitos dos candidatos aprovados e o controle pelo Poder Judiciário do concurso público.
O Estatuto se aplicará aos concursos públicos dos servidores civis e militares, detentores de cargos efetivos e vitalícios, alcançando juízes, procuradores da República, advogados públicos, delegados, peritos e agentes da Polícia Federal, auditores fiscais e de controle externo, entre outros agentes públicos que atuam na prevenção e combate à corrupção. Eis a proposta:
Dispõe, com base no art. 37, II, da Constituição Federal, sobre normas gerais para a realização de concursos públicos na administração direta e indireta dos Poderes da União.
Art. 1º Esta Lei regulamenta o art. 37, II, da Constituição Federal e estabelece normas gerais para a realização de concursos públicos na Administração Pública Federal direta e indireta, visando:

Parágrafo único. Subordinam-se ao regime desta Lei os concursos públicos para investidura em cargos públicos civis e militares, efetivos e vitalícios, e empregos públicos dos órgãos da administração direta da União, suas autarquias, fundações públicas, empresas públicas, sociedades de economia mista e demais entidades controladas direta ou indiretamente pela União.
De todos os dispositivos da proposta, um chama atenção em particular, pois sobrepõe os interesses do candidato em detrimento do interesse da Administração, que tem o dever que organizar o seu quadro de pessoal, em especial no que tange aos cargos que exercem atividade exclusiva de Estado, de forma a garantir a segurança e o direito dos cidadãos.
Trata-se da proposta do artigo 31, o qual prevê que a sindicância de vida pregressa do candidato considerará apenas elementos e critérios de natureza objetiva, sendo vedada a exclusão do concurso de candidato que responda a mero inquérito policial ou a processo criminal sem sentença condenatória transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado. Eis a redação do comando em tela:
Art. 31. A sindicância de vida pregressa considerará apenas elementos e critérios de natureza objetiva, sendo vedada a exclusão do concurso de candidato que responda a mero inquérito policial ou a processo criminal sem sentença condenatória transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado.
Essa proposta segue na contramão do que se exige nos concursos de juiz, procurador, delegado, auditores de controle externo, entre outros, que condicionam a investidura no cargo à apresentação pelo candidato de certidão negativa nas esferas cível, criminal e administrativa.
Os cuidados que os Poderes e órgãos adotam para a contratação de seus agentes até podem parecer exagerados e perversos à primeira vista, por aparentemente prejudicarem o interesse de um ou outro candidato.
Porém, as questões que envolvem a organização do Estado precisam ser analisadas de forma panorâmica, com foco na Administração Pública e nos seus deveres para com a sociedade em geral, não podendo interesses particulares se sobrepor aos interesses da coletividade encarnada no Estado.
Discussão de cunho semelhante permeou a concepção da Lei da Ficha Limpa, já que os parlamentares são resistentes à inelegibilidade daqueles que respondem a processos criminais e cíveis, incluindo neste caso as ações de improbidade administrativa. A Lei de Iniciativa Popular conseguiu avançar em alguns pontos, no sentido de tornar inelegíveis candidatos condenados por decisão transitada em julgado ou proferida por órgão judicial colegiado (artigo 1º).
Trata-se de avanço muito tímido quando o tema em debate é a gestão da coisa pública. Pior, ainda, é querer aplicar esse tipo de permissividade à contratação de agentes para ocupar cargos efetivos e vitalícios, agentes que têm a missão de investigar, auditar, processar e julgar cidadãos. Aquele que tem o dever de prevenir e combater práticas de corrupção, desvio e má gestão de recursos públicos não pode está sob nenhuma suspeita, sob pena de colocar em xeque a credibilidade das instituições públicas incumbidas dessa missão, criando campo fértil para desordem social.
O tema exige uma visita ao Voto do então presidente do Tribunal Superior Eleitoral, ministro Ayres Britto, no âmbito da Resolução nº 22.842, de 2008 (Processo Administrativo nº 19.919/TSE), referente à consulta sobre as eleições de 2008. Lembra o ministro que os direitos e garantias fundamentais se distribuem na Constituição por blocos menores ou subconjuntos em apartado, pela clara razão de que eles não mantêm vínculo funcional imediato com os mesmos princípios constitucionais estruturantes.
É como dizer: “trata-se de direitos e garantias que, operacionalmente, se vinculam mais a uns proto-princípios constitucionais do que a outros”. Isso porque são modelos de direitos e garantias fundamentais que têm a sua própria história de vida ou o seu inconfundível perfil político-filosófico, definidor das respectivas finalidades. Um perfil político-filosófico, atente-se, que é a própria justificativa do vínculo funcional mais direto com determinados princípios constitucionais do que com outros.
Mais adiante, destaca que o bloco dos direitos e garantias individuais e coletivos (capítulo I do título II da Constituição Federal) está centralmente direcionado para a concretização do princípio fundamental da “dignidade da pessoa humana” (inciso III do art. 1º). A reverenciar por modo exponencial, então, o indivíduo e seus particularizados grupamentos. Por isso que protege mais enfaticamente os bens de “personalidade individual” e os de “personalidade corporativa”, em tradicional oponibilidade à pessoa jurídica do Estado. Tudo de acordo com o clássico modelo político-liberal de estruturação do Poder Público e da sociedade civil, definitivo legado do iluminismo enciclopedista que desembocou na Revolução Francesa de 1789.
Já o subsistema dos direitos sociais (artigos. 6º e 7º do Magno Texto), sem deixar de se pôr como ferramenta de densificação do princípio da dignidade da pessoa humana, mantém um vínculo operacional mais direto com a concretização do princípio fundamental que atende pelo nome de “valores sociais do trabalho” (inciso IV do art. 1º da CR).
O exercício de direitos, frisa o ministro, não é para servir imediatamente a seus titulares, mas para servir imediatamente a valores de índole coletiva: os valores que se consubstanciam, justamente, nos proto-princípios da soberania popular e da democracia representativa (também chamada de democracia indireta).
No que tange aos direitos políticos de eleger e de ser eleito, ressalta, caracterizam-se por um desaguadouro impessoal ou coletivo. Estão umbilicalmente vinculados a valores, e não a pessoas, sob o prisma da benfazeja imediatidade do seu exercício, aplicando-se a mesma lógica, por razões muito mais óbvias, aos candidatos a cargos efetivo e vitalícios no serviço público. O foco deve ser no Estado e não em um grupo de indivíduos, sob pena de comprometer direitos da coletividade.
Na gestão republicana do poder, a composição dos corpos das instituições públicas, em especial daquelas que exercem atividade exclusiva de Estado, deve-se expor a uma análise rigorosa da vida pregressa de seus agentes, para que não se comprometa a legitimidade dessas instituições. Com esse propósito, a vida pregressa dos candidatos a cargos públicos, particularmente naqueles pontos que possam representar fatores de comprometimento do interesse público, não deve constituir objeto de incompreensível leniência por parte do Estado.
Novamente, as reflexões do ministro Carlos Ayres Britto na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) nº 144, sobre a exigência de condicionantes de elegibilidade, merecem consulta para subsidiar as reflexões. De acordo com o ministro, o princípio da presunção de inocência não é absoluto. Ressalta, mais uma vez, que a lógica dos direitos políticos é diferente da dos direitos individuais e sociais. Para ele, os direitos políticos decorrem da soberania popular e do Estado Democrático. Não se prestam a servir exclusivamente aos seus titulares, mas sim ao bem comum.
Nessa linha, é possível supor que a ideia de república legitima que aqueles que pretendem concorrer ao cargo eletivo devem ter “considerado sua vida pregressa” e o respeito à noção de moralidade. Assim sendo, os candidatos devem obedecer a limites e restrições, não podendo o trânsito em julgado constituir condição de elegibilidade e muito menos para o ingresso em cargos públicos efetivos e vitalícios.
Incompreensível seria não exigir tais condicionantes dos agentes públicos que exercem atividade exclusiva de Estado, não sendo razoável contratar para cargos efetivos e vitalícios candidatos que respondem a processo de improbidade ou desqualificados para o combate à corrupção e à improbidade administrativa. Seguir com essa proposta é subverter a lógica, é precarizar o serviço público federal. Pior ainda seria colocar em risco as decisões dos órgãos que exigiram, pelo menos após 1988, a apresentação de certidão negativa nas esferas cível, criminal e administrativa.
Há na jurisprudência registros importantes que sinalizam a inexistência de direitos fundamentais de caráter absoluto, sendo o exercício de atividade exclusiva de Estado por pessoas acusadas formalmente pela prática de crime, improbidade, desvio ou malversação de dinheiro público fator que repercute de maneira negativa nas instituições públicas, em especial aquelas que detêm a incumbência de prevenir e combater práticas de corrupção, que ficariam deslegitimadas perante a sociedade.
Considerada essa premissa verdadeira, seria incorreto dizer que as condições exigidas para ingresso no serviço público constituem um antagonismo entre o indivíduo e o Estado. São condições que visam proteger os cidadãos, a coletividade, e garantir que o Estado exerça seu poder por meio de agentes públicos não apenas tecnicamente habilitados, mas com condições morais para impor decisões ao cidadão e à coletividade, sob pena de tais instituições caírem em total descrédito que conduz à desordem social.
Permitir, por exemplo, que candidatos acusados de corrupção ou qualquer outro crime, que respondem a processos nas esferas criminal, cível (em especial nas ações de improbidade administrativa), de controle externo (por meio de tomada de contas especial) e administrativa, possam ingressar em cargos públicos efetivos e vitalícios, antes mesmo da conclusão desses processos, é um desrespeito ao direito do cidadão e dos contribuintes em geral de serem investigados, auditados, fiscalizados, processados e julgados por autoridade competente não apenas sob o ponto de vista técnico, mas da legitimidade moral sobretudo.
Afinal, como traz a parábola, “à mulher de César não basta ser honesta, tem que parecer honesta”. O cidadão tem direito a se sujeitar a instituições públicas conduzidas por agentes honestos, tanto na aparência como na realidade. Se o público percebe que algo está fora de lugar no Poder Judiciário, no Tribunal de Contas da União, na Polícia Federal, no Ministério Público Federal, então, para todos os efeitos práticos, algo está fora de lugar. Se a percepção é ou não exata, é irrelevante, devido a que, tanto em um caso como no outro, a perda da confiança na instituição é a mesma, com todos os reflexos que isso pode desencadear.
Não por acaso, ao relatar a ADPF nº 144, o ministro Ayres Britto foi enfático ao defender que “quem pretende ingressar nos quadros estatais como a face visível do Estado há de corresponder a um mínimo ético”. Na opinião do ministro, o princípio da presunção de inocência não pode ser aplicado em matéria eleitoral, uma vez que o representante do povo deve ser “cândido, puro e depurado eticamente”. Mais ainda deve-se exigir de magistrado, procurador, delegado, perito e agente da Polícia Federal, auditor de controle externo do TCU, auditor fiscal da Receita Federal do Brasil, fiscais das Agências Reguladoras, entre outros agentes públicos.
Ao permitir, apenas, a inabilitação do candidato com sentença penal condenatória transitada em julgado, a proposta dá margem a entendimentos de que o curso de processo e até mesmo a aplicação de sanções nas esferas cível, de controle externo e administrativa não podem impedir, a título de condicionante, o ingresso do candidato aos cargos públicos efetivos e vitalícios.
Se esse entendimento seguir adiante, por dedução lógica, a proposta do artigo 31 pode subverter, inclusive, a norma fixada no artigo 137 do Estatuto dos Servidores Público Civis da União (Lei nº 8.112, de 1990), que impede a investidura pelo prazo de cinco anos se o candidato tiver sido demitido de outro cargo por revelação de segredo do qual se apropriou em razão do cargo, não podendo retornar ao serviço público federal servidor demitido ou destituído do cargo em comissão, na esfera administrativa, em razão da prática de ato que também constitua crime contra administração pública, improbidade administrativa, aplicação irregular de dinheiro público, lesão aos cofres públicos e dilapidação do patrimônio nacional e corrupção. Se as esferas de responsabilização são realmente independentes, não é plausível condicionar à investidura apenas à sentença penal condenatória.
A Resolução nº 75, de 2009, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) estabelece critérios para o candidato fazer a inscrição definitiva no concurso público de juiz de forma diametralmente oposta à previsão na proposta do Projeto de Lei em debate. Eis os termos da Resolução que tem efeito de ato normativo primário, segundo o STF (ADI 3617):
Art. 58. Requerer-se-á a inscrição definitiva ao presidente da Comissão de Concurso, mediante preenchimento de formulário próprio, entregue na secretaria do concurso.

§ 1º O pedido de inscrição, assinado pelo candidato, será instruído com:

e) certidão dos distribuidores criminais das Justiças Federal, Estadual ou do Distrito Federal e Militar dos lugares em que haja residido nos últimos 5 (cinco) anos;
f) folha de antecedentes da Polícia Federal e da Polícia Civil Estadual ou do Distrito Federal, onde haja residido nos últimos 5 (cinco) anos;

h) declaração firmada pelo candidato, com firma reconhecida, da qual conste nunca haver sido indiciado em inquérito policial ou processado criminalmente ou, em caso contrário, notícia específica da ocorrência, acompanhada dos esclarecimentos pertinentes;

A Resolução nº 110, de 2010 do Conselho Superior do Ministério Público Federal também estabelece, com amparo na Lei Complementar nº 75, de 1993, os critérios para o candidato seguir no concurso público:
RESOLUÇÃO 110, 2011 CONSELHO SUPERIOR DO MPF

SEÇÃO VII
INSCRIÇÃO DEFINITIVA

Art. 45 – Apurados os resultados das provas subjetivas pela Comissão de Concurso, o Procurador-Geral da República fará publicar a relação dos candidatos aprovados nas provas escritas, convocando-os a requererem, no prazo de 10 (dez) dias, a inscrição definitiva.

§ 2º – A inscrição definitiva deverá ser requerida na Procuradoria da República na capital da unidade da federação em que efetivada a inscrição preliminar, em formulário próprio, assinado pelo candidato ou mediante procurador, acompanhado dos seguintes elementos de instrução:

V – certidão dos setores de distribuição cível e criminal dos lugares em que tenha residido nos últimos 5 (cinco) anos, da Justiça Federal, Justiça Estadual (inclusive Militar, se houver), Justiça Eleitoral e Justiça Militar da União;
VI – declarações firmadas por membros do Ministério Público, magistrados, advogados, professores universitários e dirigentes de órgãos da administração pública, no total de 5 (cinco), acerca da idoneidade moral do candidato, constando nome e endereço completos dos declarantes;

Para ser coerente, a proposta em tramitação no Congresso Nacional deveria incluir no rol das condicionantes para ingresso em cargos públicos, a apresentação de certidão negativa em relação à hipótese prevista no artigo 60 da Lei Orgânica do TCU (Lei nº 8.443, de 1992), que inabilita o responsável por irregularidade constatada pelo TCU, pelo período de cinco a oito anos, de exercer cargo em comissão ou função de confiança no âmbito da Administração Pública. Deveria, também, prever, explicitamente, a investidura de candidato processado por tentar fraudar concursos públicos, de forma a proteger a Administração Pública de investidas nesse sentido.
No momento em que a sociedade clama por ética no serviço público, a proposta de estatuto do concurso público segue na contramão dos gritos que vêm das ruas. Espera-se, todavia, que os parlamentares revejam o teor da proposta de forma a garantir a legitimidade das instituições públicas federais que podem ser consideravelmente fragilizadas se a proposta for aprovada pelo Congresso Nacional tal como foi delineada e aprovada pela CCJ do Senado Federal. Magistrado, procurador, auditor, fiscal, delegado e outros agentes que exercem atividade exclusiva de Estado não devem ter apenas ficha limpa, mas FICHA LIMPÍSSIMA.

*Lucieni Pereira é Auditora Federal de Controle Externo do Tribunal de Contas da União, professora de gestão fiscal e atualmente é presidente da Associação dos Auditores de Controle Externo dos Tribunais de Contas do Brasil. A opinião da autora não vincula o Tribunal de Contas da União e a ANTC. Brasília, 1º de julho de 2013.