O orçamento público precisa ser o vento que impulsiona as velas do progresso

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Nesta segunda-feira, 07 de julho de 2025, O Globo estampou em sua manchete: “Gasto com previdência e BPC deve aumentar R$ 600 bi em 15 anos”. O dado faz parte de um estudo conduzido pelo economista Daniel Duque, do Centro de Liderança Pública (CLP). Mais uma vez, o debate fiscal é pautado unicamente pela ótica da despesa, sem qualquer menção ao modelo de desenvolvimento que levou o Brasil a essa estrutura social desigual e à informalidade crônica do mercado de trabalho.

Sem qualquer análise estrutural do contexto econômico brasileiro, o estudo se limita a tratar dos mínimos constitucionais da saúde e da educação, além de defender a desvinculação de benefícios sociais do salário-mínimo. Até aqui, nenhuma novidade para quem acompanha o debate sobre finanças públicas. O problema começa quando o autor decide fundamentar suas conclusões comparando o Brasil com países da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). Nesse ponto, a análise escorrega para o absurdo.

O economista simplesmente ignora que os países da OCDE são centrais no sistema capitalista, ao contrário dos países da América do Sul, que ocupam posição periférica. Essa diferença não é meramente geográfica, ela reflete profundas assimetrias estruturais que jamais deveriam ser ignoradas em qualquer análise minimamente séria.

Do ponto de vista orçamentário, os países centrais operam com sistemas fiscais mais progressivos e estruturas de gasto público mais distributivas, o que não só fortalece a saúde fiscal, como também reduz desigualdades, amplia a coesão social e impulsiona um crescimento econômico mais sustentável. Já países periféricos, como o Brasil, seguem em sentido oposto. Ignorar esse cenário e aplicar receitas inspiradas em modelos dos países ricos é, no mínimo, tecnicamente arriscado. Para não dizer equivocado.

No mercado de trabalho, a assimetria se repete: os países da OCDE contam com estruturas produtivas sofisticadas baseadas em tecnologia e inovação, o que aumenta a produtividade do trabalho e se traduz na geração empregos formais de maior qualidade e maior massa salarial. Naturalmente, isso contribui para a inclusão dos trabalhadores ao mercado formal e reduz, ao longo do tempo, a pressão orçamentária sobre a assistência social.

O Brasil, porém, apresenta um quadro distinto. Segundo o IBGE, mais de 38% da força de trabalho permanecem na informalidade, índice superior ao dobro da média observada nos países da OCDE. Esse fenômeno não é fruto do acaso, mas sim resultado de uma trajetória econômica historicamente marcada pela dependência estrutural de atividades de baixa complexidade produtiva, com forte predominância do setor primário-exportador. Essa configuração, caracterizada pela baixa diversificação da base produtiva e pela limitada incorporação tecnológica, restringe a capacidade de geração de empregos formais e de melhor qualificação profissional. Como consequência, a estrutura econômica, além de concentrar renda, precariza as relações de trabalho e induz a informalidade. Essas condições estruturais da economia – fundamentais para compreender as causas da suposta pressão dos benefícios sociais sobre o orçamento público – foram simplesmente ignoradas no estudo do CLP.

Esse quadro tem se agravado com o processo de desindustrialização precoce, em curso desde os anos 1980 e aprofundado pelas políticas neoliberais das décadas seguintes. A redução do papel do Estado na economia e o enfraquecimento das políticas industriais diminuíram o peso da indústria no PIB, restringiram a geração de empregos formais e ampliaram ainda mais a dependência de setores primários. Como consequência, a informalidade se manteve em patamares elevados, aumentando a pressão sobre o orçamento público, que passou a responder à exclusão produtiva por meio de maior gasto social.

O resultado? Milhões de jovens que passaram a vida toda na informalidade nos anos 1980 e 1990 hoje são idosos e dependem do BPC para sobreviver. Isso não é “gastança”! É o reflexo de um modelo econômico excludente, que falhou sistematicamente em gerar empregos formais em larga escala.

Ademais, a matéria afirma que 70% dos trabalhadores não conseguem ganhar mais que um salário mínimo e, por isso, optam pela informalidade; argumento usado para justificar a desvinculação de benefícios sociais do salário mínimo. No entanto, essa é uma inversão completa da lógica: essa realidade é um sintoma, não a causa. O verdadeiro problema, como já apontado, está na incapacidade estrutural da economia brasileira de gerar empregos de qualidade e de melhor remuneração.

Nesse sentido, faltam políticas públicas eficazes para transformar a base produtiva, elevar a produtividade do trabalho e tirar o país da armadilha da renda média. Potencial, certamente, não nos falta. Contudo, isso exige um regramento fiscal mais ativo e uma reformulação do significado do gasto público, que não pode ser confundido com a lógica do gasto familiar, como frequentemente é afirmado na mídia tradicional.

Qualquer ajuste orçamentário que não venha acompanhado de uma estratégia para mudar nosso modelo produtivo é apenas empurrar o problema para as gerações futuras. O orçamento público, dadas as suas funções (alocativa, distributiva e estabilizadora), precisa ser o vento que impulsiona as velas do progresso, não a âncora que impede a navegação.


Jairo Gabriel Soares de Sousa é Analista de Planejamento e Orçamento, lotado na Secretaria de Orçamento Federal do MPO.

 

Este é um texto de autoria de um profissional da carreira e não necessariamente reflete as opiniões da Assecor.