Empréstimos sob suspeita

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O governo não terá sossego. Ao rejeitar a proposta de um escrutínio na dívida pública em meados deste mês, a presidente Dilma Rousseff comprou uma briga que será grande, promete Maria Lucia Fattorelli, coordenadora nacional da Auditoria Cidadã da Dívida.

A entidade havia conseguido a inclusão da proposta no Plano Plurianual (PPA), aprovado no fim de dezembro, por meio de uma emenda do deputado Edmilson Rodrigues (PSol-PA). Mas o trecho foi eliminado na sanção presidencial da lei, em meados de janeiro. Na semana passada, a Auditoria Cidadã iniciou uma campanha para a derrubada do veto de Dilma.

Na página eletrônica da associação (www.auditoriacidada.org.br) é possível aderir ao abaixo-assinado em defesa da causa, que tinha ontem o apoio registrado de 3.669 pessoas, das quais 113 deputados e 25 senadores. São necessários, porém, 257 votos na Câmara e 41 no Senado para a derrubada do veto presidencial.

“A presidente perdeu uma ótima oportunidade de recuperar a popularidade”, critica Fattorelli, auditora aposentada da Receita Federal. Para ela, seria possível equacionar os problemas fiscais do país e retomar o crescimento econômico se o Executivo conseguisse reduzir seus débitos — vários economistas, porém, veem essa ideia como uma miragem. A proposta, inscrita no PPA, era que o Ministério da Fazenda promovesse uma pesquisa detalhada da origem das obrigações do governo, em um processo que teria o acompanhamento de entidades da sociedade civil.

Injustiça

Para Fattorelli, muito do que o Estado deve é injusto e ilegal. “Já na Independência, o Brasil foi obrigado a assumir uma dívida que Portugal tinha com a Inglaterra”. Ela garante que não se opõe a que um país tome dinheiro emprestado para fazer investimentos. “O problema é que nosso passivo éimenso e não se veem as razões para termos chegado a isso, os investimentos realizados. O que existe é um sistema da dí- vida, que nos faz ficar constantemente atolados”, argumenta. O total de obrigações do Estado encerrou 2014 em R$ 3,25 trilhões, segundo dados do Banco Central (BC). Em dezembro de 2015, atingiu R$ 3,93 trilhões, um acréscimo de R$ 675 bilhões.

A auditora aposentada acredita ter fortes motivos para apostar na redução do peso dos débitos sobre o Estado, argumentando que as operações dos anos 1980, durante o regime militar, são suspeitas, assim como as de outros países latino-americanos. Não fala apenas por hipótese. Ela trabalhou durante quase dois anos, no fim da década passada, em uma avaliação pormenorizada da dívida do Equador, quando ainda era servidora da Receita. Seu trabalho foi, quase na totalidade do período, voluntário, usando férias e períodos de licenças-prêmio a que tinha direito como servidora. Só nos quatro meses finais foi cedida, com remuneração, pelo ministro Guido Mantega.

O relatório da comissão indicava que o Equador não deveria pagar nada. Ao contrário, deveria ser ressarcido por juros pagos indevidamente. “O presidente Rafael Correa afirmou que buscar uma solução jurídica para isso levaria anos. Optou, então, por uma ação política”, explica Fattorelli. Correa ofereceu resgatar os títulos com 70% de deságio. “Foi procurado por 95% dos credores o que resultou em uma economia de US$ 7 bilhões para o país”, conta a coordenadora da Auditoria Cidadã. No ano passado, ela fez um trabalho semelhante para a Grécia, e também descobriu altos valores indevidos. Mas o primeiro-ministro Alexis Tsipras abriu mão de brigar por isso.

Equador

Um dos itens centrais da auditoria realizada no Equador foi um documento em que o governo, nos anos 1980, se comprometeu a abrir mão de reivindicar a prescrição dos débitos. “Era um papel empoeirado,que estava escondido no fundo de uma prateleira”, conta Fattorelli. O compromisso assumido pelo país era ilegal, ela alega, e foi feito como para evitar que os acordos da dívida dos anos 1980 e início da década de 1990 fossem contestados. Nesse processo, depois de longa negocia- ção, os débitos com bancos foram substituídos por títulos, de livre negociação no mercado. Ela acredita que o Brasil e outros paí- ses latinos-americanos tenham feito a mesma coisa. O problema, aponta a auditora aposentada, é que a lei de Nova York determina que qualquer dívida perde o valor se não for cobrada ao longo de seis anos. “Muito do que era devido já estava prescrito, mas os países devedores abriram mão de reivindicar isso”. Os governos latino-americanos ficaram durante vários anos em situação de moratória, em que não pagavam juros devido, o principal da dí- vida ou ambos. Nessa fase, a coordenadora da Auditoria Cidadã suspeita que houve prescrição dos débitos. O senador Alvaro Dias (PV-PR) defende a proposta de auditoria da dívida, que julga, porém, difícil de emplacar.“Esse assunto émuito importante. Nos últimos anos, houve uma farra de empréstimos de organismos internacionais a estados e municípios, com anuência do governo federal. Isso é uma bomba-relógio. Mas vai ser muito difícil conseguir os votos para eliminar o veto”. Os quase R$ 4 trilhões da dívida são resultado na falta de controle nos gastos públicos, na avaliação do economista Bruno Lavieri, sócio da 4E Consultoria. “A conta de juros cresce muito porque o governo não tem credibilidade no mercado para reduzir o rombo fiscal. E isso vem aumentando o volume da dívida, que está com prazos cada vez mais curtos de vencimento”, avisa. 

Críticas são contestadas 

Além da derrubada do veto presidencial, a Auditoria Cidadã da Dívida terá um trabalho difícil para demonstrar que parte dos débitos são indevidos. Para o economista Carlos Eduardo de Freitas, ex-diretor do Banco Central, a alegação não faz sentido. “A dívida era constantemente cobrada e reconhecida, mesmo quando estávamos em situação de moratória”, diz ele. Funcionário de carreira da autoridade monetária, antes de chegar ao topo da instituição ele atuou em áreas que lidavam com as obrigações externas do país. Cedido ao Ministério da Fazenda no início do governo Collor, atuou no grupo que renegociou a dívida para a conversão das obrigações bancárias em títulos, sob a liderança do diplomata Jório Dauster — mais tarde, o cargo seria de Pedro Malan, que se tornou presidente do BC e, em seguida, já no governo de Fernando Henrique Cardoso, ministro da Fazenda. Com a conversão da dívida em títulos, ainda no governo Itamar Franco, o país voltou aos mercados internacionais. Foi uma etapa indispensável para abrir caminho para o Plano Real, que trouxe a estabilidade monetária. Sem a formação de reservas em dólar por meio da emissão de títulos, não teria sido possível ao governo segurara cotação do dólar que levou ao controle da inflação. A conversão das dívidas bancárias em títulos não é, porém, a única operação na mira da Auditoria Cidadã. Outro ponto é o fato de que, ao longo dos anos 1980, a dívida do governo incorporou obrigações de empresas. Freitas também contesta isso. Explica que as empresas não podiam enviar o dinheiro diretamente para os bancos credores no exterior. Pagavam ao BC, que remetia o dinheiro ou assumia o débito. Como as reservas eram escassas ou inexistentes, dependendo do momento, a dí- vida do governo acabou por se avolumar. Analistas de mercado afirmam reservadamente, porém, que houve suspeitas na época, nunca investigadas, de que algumas empresas tiveram acesso a informação privilegiada. Correram para antecipar pagamentos de dívida em dólar pouco antes de grandes movimentos de desvalorização da moeda em relação ao cruzeiro. Freitas afirma que o escrutínio da dívida não trará qualquer mudança no tamanho do passivo brasileiro. “Não existe um sistema da dívida. O que existe é que os governos gastam mais do que arrecadam, e isso provoca o aumento da dí- vida. Para reduzi-la, é necessário cortar gastos ou aumentar a arrecadação de tributos”, argumenta.