A democracia não cabe no Orçamento
Considerar o gasto social como insustentável é artifício retórico para defender o mercado, o pacto social individualista e a mercantilização dos serviços públicos
O Brasil vive hoje uma crise multidimensional: política, econômica, social, institucional, mas, também, democrática. O pacto social brasileiro, firmado na Constituição de 1988 e reafirmado nas últimas eleições, vem sendo atropelado pelas ações do Executivo, Legislativo, pelas agendas Renan, Cunha, Levy e pelo discurso ideológico dos economistas de mercado.
A queda no crescimento e a consequente diminuição na arrecadação criaram um ambiente fértil para análises rasteiras que apontam para a insustentabilidade da trajetória de crescimento do gasto púbico e para a inevitabilidade da redução do gasto social.
Em meio à crise, questões essencialmente políticas têm sido tratadas às pressas como se fossem questões técnicas, a despeito dos princípios que norteiam a democracia brasileira.
No Brasil, por exemplo, um cidadão pobre com uma doença grave tem direito constitucional a tratamento no SUS. O custo desse tratamento, às vezes muito oneroso, é arcado pelos contribuintes. Simbolicamente, trata-se de um pacto de solidariedade entre nós, onde dividimos os custos do acesso universal à saúde, aos outros bens públicos e benefícios sociais diversos.
Já em outros países, como nos Estados Unidos, um cidadão pobre com uma doença grave é deixado à sua própria sorte. A saúde é uma mercadoria como outra qualquer e os mecanismos de mercado selecionam aqueles que podem acessá-la. O individualismo – e não a solidariedade – norteia esse pacto social que limita o acesso aos serviços sociais àqueles que têm dinheiro.
Esses dois modelos de pacto social são frutos de decisões coletivas e reflexos do processo democrático e são baseados em valores socialmente compartilhados. É nesse contexto que deveria se colocar o debate sobre o gasto social no Brasil.
No entanto, o tema do gasto social tem sido tratado à revelia do ambiente democrático. O projeto da nova DRU (Desvinculação de Receitas da União) é discutido em Brasília, sem que a população sequer saiba o que significa essa sigla e tampouco que a DRU possibilita desvincular recursos públicos de sua finalidade constitucional, retirando-os do gasto social (que configura a maior parte do gasto vinculado).
Não há nada de inexorável na situação fiscal brasileira que imponha um ajuste nessa direção. A dívida bruta brasileira se encontra em patamar próximo ao de dez anos atrás, em torno de 65% do PIB, mas a situação fiscal é melhor, já que a dívida líquida brasileira, indicador mais adequado para análise da solvência do Estado, está dez pontos percentuais mais baixa, em torno de 35%.
Sobre o equilíbrio entre gastos e receitas tampouco pode-se apontar uma situação incontornável. Na última década, a trajetória do gasto público cresceu acima do PIB, pois acompanhou o crescimento da arrecadação e dos salários. Já a arrecadação também cresceu acima do PIB, refletindo as melhoras no mercado de trabalho, com a redução do desemprego e aumento da formalização.
Se a atual mudança no cenário econômico impõe desafios para a continuidade do crescimento do gasto social, certamente há alternativas a serem discutidas. Uma pesquisa de Rodrigo Orair e Sergio Gobetti, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), com dados da Receita Federal, mostra como a carga tributária contribui para perpetuar nosso cenário dramático de desigualdade de renda e aponta soluções para melhorar a distribuição de renda e a arrecadação.
No Brasil, 71 mil pessoas (0,3% dos contribuintes) concentram 14% da renda total dos declarantes. Essas mesmas famílias pagam apenas 6% de impostos sobre a sua renda total, já que essa renda é composta principalmente por lucros e dividendos, rendimentos isentos de imposto. Ou seja, no Brasil os ricos pagam muito menos imposto do que a classe média assalariada. Por isso, com a implementação de um imposto sobre lucros e dividendos, além da melhoria da progressividade da carga tributária, seria possível arrecadar em torno de R$ 50 bilhões para os cofres públicos, segundo estimativa dos autores.
Portanto, dizer que não há alternativa, que o ajuste é inevitável, que o gasto social é insustentável, como fazem alguns economistas, além de falso, é antidemocrático. Esse tipo de argumento configura um artifício retórico para defesa do livre mercado, de um pacto social individualista, da desconstrução do incipiente Estado de bem-estar brasileiro e da mercantilização dos serviços públicos. Nele, subordina-se o político ao técnico e o social ao fiscal, como se a democracia não coubesse no orçamento.
* Pedro Rossi é professor do Instituto de Economia da Unicamp e coordenador editorial do Brasil Debate