Dívidas, dúvidas e mais dívidas

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“hoje eu me sinto como se ter ido fosse necessário para voltar, tanto mais vivo de vida mais vivida, dívidas e dúvidas pra lá e pra cá”
(adaptação livre de Back in Bahia, de Gilberto Gil)

Dentre os muitos documentos divulgados periodicamente pelo Ministério da Fazenda (MF), nos últimos tempos começa a ganhar maior atenção e relevância o “Relatório Mensal da Dívida Pública Federal”. A elaboração do material é de responsabilidade da Secretaria do Tesouro Nacional (STN) e traz informações relevantes a respeito do comportamento e da evolução relativos ao processo de endividamento público em nossas terras.


O número mais recente encerra as estatísticas de junho, apresentando um estoque total da dívida pública federal no montante de R$ 2,58 trilhões. Esse valor significa uma elevação de 3,5% sobre o nível apurado no mês imediatamente anterior. Apesar de representar um crescimento mensal expressivo, não se recomenda fazer avaliações muito conclusivas levando em conta apenas essas oscilações de curtíssimo prazo. Há variações causadas por movimentos de compra e venda de títulos antigos ou por colocação de novos papéis em operações junto ao mercado, de maneira que o mais indicado é utilizarmos os dados numa perspectiva de longo prazo.


De maneira geral, a observação do comportamento da dívida pública é importante para a análise da natureza de sua evolução e também da capacidade de o Estado brasileiro cumprir com tais obrigações. Além disso, no período recente a questão passou a ser mais comentada em razão da obstinação dos responsáveis pela política econômica para com a geração de excedente fiscal em níveis extorsivos. Como sabemos, a malandragem embutida no conceito de superávit primário envolve um esforço a ser realizado sobre as contas públicas, de forma a assegurar um saldo positivo entre as receitas e as despesas ditas “reais”, com o intuito de que tais recursos “sobrantes” sejam direcionados para o pagamento de despesas financeiras. Afinal, para bem atender às necessidades do financismo, esses gastos são intocáveis. Recomenda-se o corte em saúde, educação, previdência sócia, novos investimentos e outros. Mas os recursos do orçamento da União alocados para o pagamento de juros e serviços da dívida – aí também é pedir demais, não? Esses não podem ser mexidos!


Superávit primário para reduzir a dívida?


Um dos argumentos mais utilizados pelos defensores dessa medida concentradora de renda é que o esforço para conseguir o superávit primário se revela importante para que o Brasil não venha a sofrer um processo de crescimento descontrolado de sua dívida pública. Interessante, não? O raciocínio pode até fazer sentido para quem não acompanha os detalhes operacionais das nossas finanças públicas. Os exemplos sempre lançados de forma simplória a respeito da economia do indivíduo, da família ou da empresa demonstram que, caso os juros da dívida não forem pagos, o valor do principal da mesma tende a subir. Ocorre que Estados soberanos têm outra lógica de funcionamento e podem lançar mão de outros artifícios no campo da economia. Por exemplo, conseguem emitir títulos, podem imprimir moeda, conseguem operar com reservas internacionais, entre outros. Mas há situações em que seus governantes cumprem religiosamente tudo aquilo que lhe foi ordenado pelo establishment do sistema financeiro e, mesmo assim, não conseguem resolver a questão.


O caso mais gritante dessa contradição atualmente é o da Grécia. Mas como já alertei em artigo anterior, temos algumas características semelhantes àquele país. E o Brasil não fica muito atrás nesse quesito de obedecer cegamente ao ditame do financismo e não lograr os resultados que a terapia severa vem prometendo há muito tempo. Senão, vejamos.


Os dados relativos à evolução de nossa dívida pública demonstram que ela vem crescendo de forma sistemática ao longo dos últimos anos. O boletim consolida as estatísticas das parcelas interna e externa da dívida. Como as informações são apresentadas em reais, o mais correto é atualizar os números por meio do índice de preços que a própria STN sugere. Assim, percebemos que os valores em dezembro de 2002 correspondem a R$ 1,31 trilhão a preços atuais. Cinco anos mais tarde, em dezembro de 2007, o valor total da dívida havia subido para o montante de R$ 2,09 trilhões também a preços de hoje. Passado mais um quinquênio, a dívida total estava na marca de R$ 2,39 trilhões. E finalmente hoje ela registra um recorde de R$ 2,58 trilhões.



    * Em R$ bilhões de jun/2015


Ora, se o raciocínio exposto mais acima fosse correto, uma das razões para o crescimento da dívida teria sido o não pagamento de juros ou um grande crescimento de dívida nova, em razão de investimentos ou coisa do gênero. Afinal, como explicar que o endividamento tenha praticamente dobrado (em termos reais, com valores atualizados monetariamente) do final de dois mandatos de Lula, o primeiro de Dilma e mais esse início de seu segundo mandato?

As dúvidas sobre as dívidas tornam-se ainda mais complexas quando se introduz a evolução do superávit primário ao longo de todo esse período. È bastante conhecida a opção pela famosa Carta aos Brasileiros, quando o candidato Lula em 2002 assegurava às chamadas “forças do mercado” que não mexeria na essência da política econômica que vinha sendo desenvolvida pelos tucanos, desde o Plano Real em 1994. E uma das pedras de toque do arcabouço do neoliberalismo era a garantia do pagamento de juros e serviços da dívida.


Pagamento de juros: R$ 2,5 trilhões desde 2003.

Pois bem, o recém-nomeado Ministro da Fazenda, Antonio Pallocci, anunciava, em fevereiro de 2003, que não apenas manteria o espírito da política do período de Pedro Malan, como ainda aumentaria o superávit primário de 3,75% para 4,25% do PIB. Uma loucura! Uma demonstração de bom-mocismo para afagar a alma do financismo. E de lá prá cá, o compromisso de gerar esse excedente fiscal anualmente, para honrar os compromissos financeiros da dívida pública, foi mantido de forma rigorosa. Os índices e os valores variaram a cada ano, mas o fato é que a sociedade brasileira continuou sendo submetida a um regime de extorsão de suas riquezas, que são direcionadas para uma atividade completamente parasita e amplificadora do modelo concentrador de renda e marcado pela desigualdade.

E o grande paradoxo de todo esse esquema é que o Brasil alocou ao longo desse período todo (12 anos e meio) o equivalente a R$ 2,5 trilhões de juros apenas para o pagamento de juros da nossa dívida pública federal. Não, você não leu errado, não! O número é esse mesmo: R$ 2,5 trilhões transferidos à esfera do financeiro! As informações estão disponíveis no documento “Resultado do Tesouro Nacional”. Ou seja, por aqui também se confirma o drama perverso da armadilha da dívida. A política econômica implementada pelos sucessivos governos foi concebida para cumprir os compromissos assumidos junto ao sistema das finanças. Um volume mastodôntico de recursos públicos deixou de ser investido em áreas estratégicas do setor público, condição essencial para viabilizar qualquer projeto sério de desenvolvimento nacional. E ainda assim, o País vai atravessando esse ciclo todo com o montante de dívida sendo multiplicado por 2.

É urgente a mudança de modelo, para que a sociedade não continue refém de um regime que exige a extração de recursos vultosos para poucos e oferece quase nada em termos de políticas públicas voltadas para a grande maioria.


* Paulo Kliass é Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal e doutor em Economia pela Universidade de Paris 10.