O descaso e a falência de um sistema prisional

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Autor(es): KELLY ALMEIDA » MANOELA ALCÂNTARA

Numa região onde o sistema prisional amontoa quase 1,5 mil presos a mais do que a capacidade, é quase impossível imaginar que há R$ 38 milhões liberados pelo governo federal, desde 2008, para a construção de unidades para o Entorno. O descaso do Governo de Goiás se arrasta por cinco anos. Dos quatro presídios previstos, dois têm somente a terra batida: um está com embargo judicial e o outro não chegou à metade da obra. Em Águas Lindas, por exemplo, 24 detentos se espremem em uma cela de 6 metros quadrados. No outro extremo, a situação é ainda pior. A Cadeia Pública de Planaltina de Goiás tem um agente prisional para cada 40 internos.

A responsabilidade pelos atrasos nas obras das novas penitenciárias, com capacidade para 1,2 mil presos, gerou um embate entre os governos federal e estadual. As construções só tiveram início no ano passado depois de várias intervenções do Ministério Público de Goiás (MPGO). O recurso deveria ter sido utilizado para erguer duas unidades com 421 vagas, cada. Mas, segundo o MPGO, o modelo apresentado à época era muito oneroso, e o recurso, insuficiente. “Reformulamos a ideia e duas estruturas se transformaram em quatro presídios, cada um com capacidade para 300 pessoas. O valor é o mesmo, mas está sendo aplicado só agora”, critica o promotor Bernardo Boclin Borges, coordenador do Programa do Entorno, do MPGO.

Além da verba liberada pelo Ministério da Justiça, por meio do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci), Goiás investirá mais R$ 16,3 milhões, totalizando R$ 54,3 milhões. Apesar de as altas cifras estarem disponibilizadas para Goiás desde dezembro de 2008, pouco se vê de melhoria no sistema.

O Correio esteve em três das quatro regiões que receberão presídios. Nos municípios goianos de Formosa, Águas Lindas e Novo Gama, não há um tijolo sequer no lugar. Somente em Anápolis a obra está em andamento (leia quadro). A reportagem também visitou as atuais unidades prisionais, incluindo a de Planaltina de Goiás, que já foi considerada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a pior do estado. “É um sistema de faz de conta. Uma estrutura que nunca funcionou”, ressalta Borges.

A partir de hoje, o Correio publica uma série de reportagens sobre a situação do sistema prisional das regiões vizinhas ao DF. Os problemas detectados vão além do deficit de vagas. Faltam estrutura básica, servidores, remédios, água, comida e muitos outros itens básicos para uma sobrevivência digna. O descaso afeta não só os presos. Os servidores trabalham diante do medo de ver uma rebelião chegar ao porte da que ocorreu na penitenciária de Pedrinhas, no Maranhão. A população também é prejudicada. Hoje, praticamente todas as unidades estão localizadas dentro das cidades, ao lado de casas, igrejas e escolas.

Responsabilidade
O Governo de Goiás atribui o atraso das obras ao excesso de exigências da legislação e ainda a um “erro” do Ministério da Justiça na elaboração do projeto inicial. De acordo com o gerente de Engenharia e Arquitetura da Secretaria de Estado de Administração Penitenciária e Justiça (Sapejus), Marcus Patury, em um primeiro momento, o contrato era destinado à construção de penitenciária de jovens e adultos. “O projeto do Ministério da Justiça demorou dois anos para ficar pronto. Quando chegou ao Estado, percebemos que existia uma série de problemas. O projeto elétrico, por exemplo, foi elaborado de acordo com as normas previstas no Paraná. Para Goiás, elas não foram aprovadas”, explica.

A Centrais Elétricas de Goiás (Celg) não aprovou o documento, e as licitações fracassaram três vezes. Em 2011, a presidente Dilma Rousseff reformulou o projeto e sinalizou que cancelaria a verba para todos os estados que não tivessem iniciado as obras. Mas uma manobra no Departamento Penitenciário Nacional (Depen), com a interferência do Ministério Público de Goiás, manteve os recursos.

Uma legislação estadual, porém, não permitia a construção de unidades penitenciárias com 421 vagas. A lotação máxima é de 300 pessoas. O projeto inicial foi desmembrado em quatro unidades: Novo Gama, Anápolis, Águas Lindas e Formosa. “Fizemos várias ações, e o Depen autorizou que a verba fosse utilizada para a construção dessas unidades, desde que Anápolis entrasse com a contrapartida”, conta o promotor Bernardo.

Depois de anos tentando aplicar um projeto que não estava de acordo com a legislação, a Sapejus concluiu os projetos em quatro meses. Começaram as licitações. Em dezembro de 2011, as propostas das construtoras foram avaliadas. Tudo foi orçado, os custos, definidos, e as companhias, escolhidas. As empreiteiras iniciaram o serviço. Porém, as quatro empresas vencedoras do processo licitatório desistiram das obras. Alegaram não dar conta do trabalho pelo valor orçado inicialmente e ainda mais pela burocracia. “A Caixa Econômica Federal analisa contrato por contrato. O recurso efetivo só saiu no fim de 2010. Primeiro, vem a desvinculação, o dinheiro sai do orçamento e vira recurso real em conta”, justifica Patury.

O Ministério da Justiça contradiz a informação do Governo de Goiás. Segundo explicações da assessoria de Comunicação, o estado apresentou projetos próprios para a construção das quatro primeiras unidades (Águas Lindas, Novo Gama, Formosa e Anápolis). “O Depen nunca utilizou diretrizes do Paraná e, sim, do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária do Ministério da Justiça”, diz a nota. Ainda segundo o órgão, a demora na construção é de total responsabilidade do governo de Goiás, pois os projetos foram aprovados no Depen em novembro de 2011.

A situação das obras

Novo Gama
A obra foi iniciada no ano passado, mas acabou interrompida por falta de repasse. A Caixa, segundo o governo goiano, exigiu várias correções no processo licitatório. A obra só foi retomada no início do ano. Na semana passada, 30 homens trabalhavam no terreno. No local, há poucas máquinas, uma placa do governo federal e piquetes. A previsão de conclusão é 2015. O total de vagas previstas é 300. Investimentos: R$ 12,3 milhões do governo federal e R$ 1,3 milhão de Goiás.

Anápolis
Pouco mais de 40% das obras estão concluídas. Em setembro de 2013, foram solucionados os problemas administrativos do contrato. Os repasses pendentes foram concluídos, e a empreiteira toca a obra. É o único presídio que tem tijolos erguidos, mas são poucos. Total de vagas: 300. Investimentos: R$ 7 milhões do governo federal
e R$ 6 milhões do governo estadual.

Águas Lindas
A construção está parada há um ano. Existiam pendências administrativas no contrato. A empresa que ganhou a licitação não aceitou a ordem de serviço. A Caixa analisa o contrato para saber se libera a verba. A terraplenagem feita pela empresa anterior perdeu o efeito. O local virou área de desmanche. A placa do governo federal foi arrancada. Abrigará 300 presos. Investimentos: R$ 12,3 milhões do governo federal e R$ 1,3 milhão do governo goiano.

Formosa
Teve início em janeiro de 2013, mas a empresa desistiu da construção. Um homem entrou na Justiça reclamando que o terreno cedido pela prefeitura pertence a ele. A Agência Goiana de Transportes e Obras tenta formalizar um acordo com o suposto dono do espaço. Ele alega ser proprietário de 60% das terras e tem uma liminar que impede a obra. São 300 vagas para detentos. Investimentos: R$ 5,7 milhões do governo federal e R$ 8,4 milhões de Goiás.

Barbárie
O Complexo Penitenciário de Pedrinhas, em São Luís, no Maranhão, entrou no centro das discussões sobre direitos humanos após a divulgação de imagens feitas pelos presos de detentos decapitados dentro da cadeia. A prisão tem sido palco de chacinas e pelo menos 60 pessoas foram assassinadas desde 2012. A situação provocou manifestações nacionais e internacionais cobrando atitudes do governo brasileiro para solucionar a escalada da violência e o ambiente degradante ao qual os internos são submetidos.