Contabilidade criativa melhora investimento

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Os investimentos públicos são fundamentais para garantir a retomada do crescimento e menores taxas de inflação. No entanto, na contabilidade do governo, quase tudo é classificado nessa rubrica, do pagamento de aluguéis e subsídios a itens como a aquisição de microfones sem fio e instrumentos musicais. Dados obtidos pelo Correio no Portal da Transparência revelam que gastos de consumo como esses, que, na prática, significam mais pressão inflacionária, são frequentemente maquiados e contabilizados como se fizessem parte das chamadas despesas de capital, que deveriam melhorar as condições da economia.

Boa parte do que o governo classifica como investimento é, na realidade, dinheiro usado para manter o funcionamento da burocracia estatal. São compras de máquinas de fragmentar papel, ar-condicionado, persianas, cadeiras giratórias e outros móveis caros. Ainda assim, recebem o carimbo de investimentos. Um percentual desses gastos é usado também, segundo especialistas ouvidos pela reportagem, para inflar os números do investimento público.

Analistas ponderam que, se a contabilização do gasto estivesse correta, o país teria de repensar a estratégia de desenvolvimento. “Essa classificação é, no mínimo, exótica. Tudo bem comprar instrumento para banda de música, mas daí a considerar isso como investimento é outra história”, observou José Roberto Afonso, especialista em finanças públicas e um dos criadores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF).

Confusão
A diferença entre gastos de custeio e de investimento se tornou tão confusa que as duas contas se misturam. É o caso de equipamentos para laboratório, que aparecem tanto em uma rubrica quanto em outra. O mesmo ocorre com o auxílio para pesquisadores, um subsídio que inflou as estatísticas de investimentos em R$ 15,6 milhões neste início de ano e, ao mesmo tempo, incrementou as despesas correntes em R$ 55,6 milhões. Pelos dados do Portal da Transparência, um mesmo pesquisador recebe auxílios que às vezes podem ser considerados despesas de capital e, em outras, de custeio.

O Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão afirma que essas classificações estão dentro da lei, mas admite que investimento, de fato, é apenas o gasto com “softwares e com o planejamento e a execução de obras, inclusive com a aquisição de imóveis considerados necessários à realização dessas obras, além da compra de instalações, equipamentos e material permanente”. Aluguel, por esse conceito, não entraria na conta. Em 23 de janeiro, porém, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, por meio da Nuclebras, lançou
como investimento R$ 16,6 mil empregados em locação de salas e pagamento de condomínio. No mesmo dia, o órgão registrou mais R$ 5,8 mil, referentes a contas de energia. Segundo a legislação, esse tipo de gasto não pode ser considerado despesa de capital.

José Roberto Afonso prefere colocar tudo em preto e branco. “Investimento público é o gasto do governo que leva a uma expansão da produtividade. Se um hospital caiu por conta de uma chuva, por exemplo, a reconstrução do prédio é investimento, mas o dinheiro usado para pagar aluguel aos desabrigados, não. É subsídio”, explicou. Talvez com o objetivo de aumentar a produtividade do Ministério da Pesca, a secretaria executiva da pasta “investiu” R$ 4,2 mil na compra de micro-ondas, forno elétrico e coifa, uma espécie de exaustor de ar para impedir que o cheiro das fritadas e a fumaça se espalhem pela cozinha da pasta.

Produtividade
Em 20 de fevereiro, a Procuradoria Seccional Federal em Duque de Caxias (RJ), da Advocacia-Geral da União (AGU), gastou R$ 5,5 mil em persianas horizontais. No ano passado, o mesmo órgão já havia desembolsado R$ 101,9 mil em cadeiras que chegaram a custar
R$ 950 por unidade. Além da AGU, outros órgãos públicos no Rio de Janeiro “investiram” milhões em mobiliário. Enquanto essas e outras aplicações foram feitas na burocracia carioca, as despesas de capital que deveriam impedir desmoronamentos e mortes, pelo segundo ano consecutivo, não chegaram ao destino ou se mostraram insuficientes no município. “É preciso lembrar, ainda, que muita coisa que está lançada no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) é custeio, e não investimento”, observou Fernando Montero, economista-chefe da Convenção Corretora.

Há casos ainda de compras de guarda-roupas, roupeiros de aço e utensílios domésticos lançados como investimentos. Na prática, despesas que evidenciam que o governo tem direcionado boa parcela de recursos para o consumo de itens que oferecem pouco ou quase nenhum retorno à sociedade. A Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), integrante do Ministério de Ciência e Tecnologia, aplicou, por exemplo, R$ 3,4 mil em um único aparelho de ar-condicionado, R$ 310 em uma fragmentadora de papel e R$ 4,7 mil em quatro microfones wireless. Produtos que, ao contrário do indicado pelo Ministério do Planejamento, oferecem pouco ou nenhum retorno ou aumento de produtividade.

Existem ainda algumas situações curiosas. O Instituto de Pesquisas Espaciais (Inpe), de São José dos Campos, órgão do Ministério de Ciência e Tecnologia, investiu metade do dinheiro usado como despesas de capital em 2013 no pagamento de multas por atraso. “Se você está classificando gastos de custeio como investimento, como parece ser o caso, está claramente inflando essa conta. Mas a grande pergunta a se fazer é só uma: o que se ganha com isso? Afinal, esse tipo de contabilidade criativa apenas joga uma suspeita desnecessária sobre o próprio governo”, argumentou Afonso.

Ótica contábil
Procurado, o Ministério da Fazenda disse que não comentaria o assunto. Já o Ministério do Planejamento afirmou, por meio de nota, que o governo segue o Manual Técnico de Orçamento 2013. As classificações adotadas, diz o comunicado, foram criadas pela Lei 4.320/1964, que “agrega a apropriação do gasto público sob a ótica contábil e orçamentária, e não sob a ótica econômica”.

“Sendo assim, alguns gastos que sob a ótica econômica aparentam ser de custeio da máquina pública são, na verdade, investimentos clássicos quando analisados sob a ótica contábil e orçamentária”, argumentou o ministério. “Informamos também, do mesmo modo, como forma de esclarecimento amplo, que os pagamentos realizados em um contrato que seja englobado por um investimento também são classificados como investimentos”, justifica. Apesar da resposta, o Planejamento não quis comentar casos específicos apurados pela reportagem, como as despesas com multas e aluguel.