A distribuição de cargos e o crime de corrupção

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Autor(es): Víctor Gabriel Rodríguez

Valor Econômico – 06/11/2012

 

 

Um jornalista de Brasília certa vez me comentou, acerca da nomeação, pelo então presidente, de um deputado para o Ministério da Agricultura, que o parlamentar indicado lhe haveria confessado não saber sequer como regar uma samambaia. E ocupou o cargo, porque, claro, seu conhecimento técnico importava quase nada diante da magnitude de seu apoio político ao Executivo, o qual passaria a compor. O relato, verdadeiro ou não, me veio à lembrança ao considerar a tese, levantada por alguns, sobre uma certa falta de isonomia no julgamento do mensalão. Pode ser assim enunciada: se todos os partidos que ocuparam o Planalto tradicionalmente adotaram atitudes moralmente condenáveis para garantir a aprovação de seus projetos nas Casas Legislativas, o pagamento em dinheiro para deputados em troca daqueles mesmos votos de sempre não seria algo em essência diverso das outras tradicionais medidas de escambo. Logo, em uma Justiça isonômica, as condenações na Ação Penal nº 470 seriam um desequilíbrio.

É quase inviável abordar o tema sem deixar-se cair nas profundezas das diferenças partidárias, mas pode-se tentar. Fixa-se então a premissa de que todos os nossos presidentes da República, inclusive (ou até em maior medida) os ditadores negociaram cargos nos ministérios ou nas pastas de poder para os representantes das forças aliadas. Em tempos democráticos, com a imprensa livre, a cada reforma de ministério a mídia divulga os motivos meramente políticos que regem as nomeações em busca da mesma simpatia do Congresso. Quando se leva em consideração que os cargos mais disputados são os que manejam maior orçamento, não é difícil suspeitar que a indicação de controle das pastas aos partidos aliados supõe, para ser eufêmico, o uso futuro não muito adequado do orçamento público.

Caso essa premissa seja aceita tal como está, não é tão descabido pensar que o ato final do mensalão – a entrega de dinheiro vivo a deputados – tem a mesma natureza que a tal histórica distribuição de cargos, apenas, por dizer algo, com maior liquidez. Ou em mera antecipação, como se fora uma simples operação de empréstimo bancário. Frente à criminalização do mensalão apenas, sobraria a questão: em que medida o direito penal consegue alcançar todas as ações moralmente condenáveis?

A coincidência entre crime e moral jamais poderá ser exata, dado o intenso conteúdo ideológico desta, a qual, se colocada sob controle direto do Estado, sufoca perigosamente as liberdades. Entretanto, é impossível julgar crimes como a corrupção sem recorrer a elementos da moral vigente, e isso ocorre por imposição da lei. Foi-se o tempo em que os penalistas imaginavam o tipo penal como uma descrição meramente objetiva da conduta, pois hoje se reconhece que vários elementos não tão palpáveis integram essa descrição, alguns com referência direta a valores sociais. Mais concretamente, no delito de corrupção criminaliza-se o recebimento, pelo exercício do cargo, de uma “vantagem indevida”. Atribuir significado a essa locução obriga o juiz a consultar a moral vigente, e não uma ética imutável.

Assim é dispensável que se altere a legislação para que se possa entender que um deputado que, sem conhecimento técnico específico para exercer uma pasta, venha a receber um ministério unicamente por contraprestação a seu apoio político, esteja a aceitar uma “vantagem indevida” à causa de seu cargo público, o que caracteriza exatamente a corrupção do artigo 317 do Código Penal. Para tal enquadramento haveria também que abandonar o consenso atual de que tal vantagem deve ser econômica (o que não está na lei), mas nesse sentido surgem dois caminhos: ou simplesmente se alarga a interpretação do vocábulo “vantagem” ou se propõe que o interesse voraz pelo controle de uma pasta alheia a seu domínio técnico indicia o futuro desvio de dinheiro.

Tudo isso para dizer que, em alguns casos, a relação é recíproca: se a moral é o que orienta o legislador para compor as proibições, tipos penais que trazem relação direta com a moralidade e a ética dependem também destas para viger. Talvez seja até um sinal de evolução social se, no futuro, considerar-se o fisiologismo político escancarado como ato criminoso, e para isso é desnecessária alteração legislativa. Assim como não há como defender, hoje, que entregar dinheiro a um deputado para que vote com o governo seja ato tolerável da política, no futuro distante talvez vejamos um urbano ministro da Agricultura denunciado por corrupção, por aceitar o cargo em troca de um favor imoral. Dependerá do espírito dos tempos.

Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de direito penal da Universidade de São Paulo (FDRP/USP) e membro da União Brasileira de Escritores