A privatização do Estado

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O Estado de S. Paulo – 24/10/2012

 

 

No ofício que enviou à Fifa por ocasião da escolha do Brasil para sediar a Copa do Mundo de 2014, em junho de 2007, o presidente Lula informou que o governo aprovaria ou solicitaria ao Congresso “todas as leis, decretos, portarias ou regulamentos nacionais, estaduais ou municipais” que fossem necessários para “assegurar o cumprimento de todas as garantias governamentais emitidas para garantir o sucesso das competições”.

Na época, o governo foi criticado por negociar questões de soberania com um órgão internacional privado, abrindo caminho para a aprovação de leis que contrariariam a Constituição, principalmente em matéria de segurança pública, privilégios para os parceiros comerciais da Fifa e renúncias fiscais. Apesar das críticas, o governo também se comprometeu a conceder “poderes especiais” aos burocratas da Fifa e visto de entrada sem qualquer restrição a todos os clientes da entidade. O governo prometeu ainda revogar a obrigatoriedade de mandado judicial para a apreensão de materiais considerados “suspeitos” de pirataria e outras “violações”, segundo a Fifa, e constituir direitos de exclusividade comercial para a entidade. Concessões semelhantes foram feitas ao Comitê Olímpico Internacional (COI), em troca da realização da Olimpíada de 2016 no Rio de Janeiro.

Cinco anos depois da remessa do ofício assinado por Lula, vê-se que a abdicação de soberania não se limitou aos termos da Lei Geral da Copa. Parte das funções da máquina governamental também está sendo privatizada, com a delegação de competências exclusivas da União para entidades como o Rio 2016 – o Comitê Organizador da Olimpíada de 2016, que entrou em vigor em junho.

A Medida Provisória (MP) 584 autoriza essa privatização. Editada em 10 de outubro, para regulamentar os grandes eventos esportivos que o Brasil sediará, ela subverte os princípios da legislação tributária brasileira. Entre outras concessões absurdas, a MP permite que órgãos alheios à União possam definir as pessoas físicas e jurídicas que serão agraciadas com isenção fiscal. Com isso, a MP transferiu prerrogativas que, pela legislação tributária, são da Secretaria da Receita Federal, vinculada ao Ministério da Fazenda. A MP também não definiu, com clareza, os critérios que serão usados para a concessão de isenções, limitando-se a afirmar que os beneficiários terão de entregar “documentação fiscal idônea”.

Além de configurar um absurdo jurídico, uma vez que afronta a Constituição, essa transferência de prerrogativas é uma porta aberta para favorecimentos espúrios, trocas de favores e pressões políticas. Basta ver que, no dia seguinte à edição da MP, as bancadas fluminenses no Congresso começaram a se articular para tentar ampliar o “leque de beneficiários” com isenção de tributos federais. O senador Francisco Dornelles (PP), por exemplo, propôs que ela seja estendida à importação de cavalos, armas brancas e embarcações à vela e remo. O deputado Alessandro Molon (PT) pediu que a isenção fiscal prevista pela MP 584 também seja usada na Jornada Mundial da Juventude, a ser realizada no Rio de Janeiro no próximo ano.

A MP 584 apresenta três outras aberrações jurídicas. Em primeiro lugar, ela foi publicada no Diário Oficial sem exposição de motivos. Em segundo lugar, a publicação não foi acompanhada de estimativa de renúncia fiscal, contrariando determinação expressa da Lei de Responsabilidade Fiscal. E, em terceiro lugar, a MP 584 impôs a retroatividade à concessão de isenções fiscais – pelo artigo 27, elas passariam a valer a partir de janeiro de 2012. Além de ser absurdo, em termos legais, a retroação esbarra num problema prático: como pode o governo devolver impostos já arrecadados de pessoas físicas e jurídicas que se beneficiarão dos incentivos a partir de janeiro de 2013?

Acima de tudo, a MP 584 viola princípios constitucionais e normas tributárias que foram amplamente debatidos, por ocasião da Constituinte, subordinando o Estado de Direito aos interesses empresariais de órgãos internacionais privados.