Desindexar ainda é preciso :: Andre de M. Modenesi, Fernando Ferrari Filho e Rui Lyrio Modenesi

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Fonte: jornal Valor Econômico do dia 5 de julho de 2011.

A indexação é definida como a correção automática dos valores nominais por um índice de preços. Normalmente, é buscada pelos agentes econômicos em momentos de inflação alta (ou crônica), como forma de proteger suas rendas do efeito corrosivo da alta dos preços – assegurando uma espécie de convivência pacífica com a inflação.

No Brasil, sua origem remonta à reforma monetária de 1965, no âmbito do Programa de Ação Econômica do Governo (Paeg) do presidente Castello Branco. No início dos anos 1960, havia o que A. L. Resende chamou de ficção da moeda estável: a coexistência de altas taxas de inflação (em 1964, os índices de preços acumulavam altas ao redor de 100%) com a lei da usura (limitava os juros em 12% ao ano). Isso inibia a demanda voluntária por títulos públicos (que apresentavam rendimento real negativo), comprometendo-se o financiamento não inflacionário do déficit.

A brilhante solução deu-se na forma de um título público indexado, a Obrigação Reajustável do Tesouro Nacional (ORTN). Já em 1965, metade do déficit – que desde 1960 vinha sendo coberto fundamentalmente por emissão de moeda – foi financiada pela venda de títulos; em 1966, a colocação de títulos assegurou o financiamento não inflacionário do mesmo.

No entanto, aquilo que, no curto prazo, parecia ser uma ótima solução transformou-se em verdadeiro tiro no pé. As ORTN representam o pecado original da ampla disseminação de mecanismos (formais e informais) de indexação, que distinguia a economia brasileira no fim dos 1970: era uma economia plenamente indexada.

Se, por um lado, a indexação assegura uma convivência pacífica com a inflação, por outro, ela dificulta a eliminação da própria inflação. A razão é bem conhecida dos brasileiros: o processo inflacionário torna-se inercial, como ficou claro a partir dos anos 1980. A inflação passada projeta-se para o futuro, criando-se um movimento de alta dos preços autônomo em relação ao lado real da economia. Isto é, a inflação inercial não resulta de choques de demanda nem de oferta.

As LFTs, verdadeiras aberrações, distorcem a curva de rendimentos e inibem financiamento de mais longo prazo

Consequentemente, a política monetária (que atua sobre a demanda) se torna pouco eficaz. O mesmo ocorre com as medidas de combate à inflação pelo lado dos custos, como as chamadas políticas de renda. No limite, o gestor de política econômica torna-se incapaz de debelar a inflação com os instrumentos tradicionais.

A interrupção do processo de alta inflação crônica foi obtida com sucesso com a reforma monetária do Plano Real. A proibição de indexação por prazos inferiores a um ano e a criação da Unidade Real de Valor (URV), inspirada na proposta de Resende e de Arida, reduziram fortemente o peso do componente inercial da inflação – recuperando-se, substancialmente, a eficácia dos instrumentos tradicionais de estabilização. Assim, foi vencida a batalha contra a alta inflação crônica.

Mas a guerra da estabilização ainda não está ganha. Ainda falta vencer a batalha da erradicação do piso inflacionário, que marca a economia nos 17 anos pós-Real: o IPCA se manteve abaixo de 5% ao ano em apenas quatro ocasiões e sua média foi superior a 7%, a despeito das doses cavalares da Selic.

Apesar do grande avanço, a desindexação do Real foi incompleta e os mecanismos de indexação ainda permeiam variados setores da economia. Quanto aos preços, destacam-se os aluguéis (indexados ao IGP-M), as tarifas de energia elétrica (parcialmente atrelada ao IGP-M) e de telefonia (indexada a um índice setorial, IST, também composto pelo IGP-M) e o salário mínimo (que passou a ser indexado ao IPCA e ao crescimento do PIB). São preços chave da economia, insumos de larga utilização, cuja indexação amplia o componente inercial da inflação.

No lado financeiro, nada foi feito: o Real manteve intocadas as anacrônicas instituições monetárias e financeiras do período de alta inflação. É preciso reformá-las, tornando-as compatíveis com a atual condição de estabilidade de preços. A existência de ativos financeiros altamente líquidos (muitos com liquidez diária) e pós-fixados (indexados ao CDI) é uma anormalidade. Não há nada similar em economias com preços minimamente estáveis, como o Brasil pós-Real. O mesmo vale para as Letras Financeiras do Tesouro (LFT), título público indexado à Selic: um ativo singular, com alta liquidez e rentabilidade e sem risco de taxa de juros. Uma verdadeira aberração, que distorce a curva de rendimentos – que tende a tornar-se mais curta e inclinada -, inibindo o financiamento de mais longo prazo.

A indexação compromete, portanto, dois elementos chave de uma estratégia de desenvolvimento econômico, em linha com o chamado Novo Desenvolvimentismo. Primeiro, contribui para reduzir a eficácia da política monetária – demandando taxas de juros relativamente altas, dadas as metas de inflação – com conhecidos efeitos deletérios sobre a atividade econômica, o câmbio e as contas públicas. Segundo, limita o financiamento de longo prazo, inibindo investimentos estratégicos (por exemplo, em infraestrutura) – assim se perpetuando os obstáculos ao crescimento sustentável. Não é à toa que, no pós-Real, o Produto Interno Bruto (PIB) cresceu em média 3,3% ao ano, numa trajetória de “stop and go”.

Em suma, a indexação constitui sério entrave ao desenvolvimento do país. A dificuldade é que há um dilema. Por um lado, a eliminação voluntária (por parte dos agentes privados) dos mecanismos de indexação pressupõe um ambiente de estabilidade bem consolidado – do contrário, os brasileiros, que têm o DNA da inflação no sangue, vão continuar buscando proteção. Por outro, a consolidação de um ambiente de estabilidade requer a desindexação. O único agente capaz de resolver esse dilema é o Estado: é preciso promover uma nova rodada de desindexação, que elimine os entulhos remanescentes do período de alta inflação crônica. Enfim, a guerra da estabilização ainda está para ser vencida, dezessete anos depois do Plano Real.

Andre de Melo Modenesi é professor adjunto da UFRJ, pesquisador do CNPq e autor de “Regimes monetários: teoria e a experiência do Real” (Manole, 2005).

Fernando Ferrari Filho professor titular da UFRGS e pesquisador do CNPq.

Rui Lyrio Modenesi ex-professor adjunto da UFF e economista aposentado do BNDES.