A crítica impertinente

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Antonio Delfim Netto

Valor Econômico – 13/11/2012

 

 

Todos os leitores do Valor são “ipso facto”, bem informados. Sabem que o mandato de Mervyn King, o atual Governador do “The Bank of England” está terminando e que o banco e o Tesouro de Sua Majestade estão à procura, com anúncios públicos no mundo, de um substituto.

No dia 9 de outubro na London School of Economics, para comemorar o 20º aniversário da introdução do sistema de “metas inflacionárias” na Inglaterra, King deu uma aula interessante sobre a história do sistema, seus fundamentos intelectuais, suas vantagens e seus problemas. Refletiu sobre o período da “grande moderação” (1997-2007) e a valorização da libra de 25% contra outras moedas, “não inteiramente explicável”, para revelar numa espécie de lamento: a tardia descoberta que a estabilidade dos preços não é condição suficiente para a estabilidade do sistema financeiro. Na última frase da humilde e extraordinária confissão, King engole em seco a prepotência que costuma dominar alguns pseudos cientistas monetários e entrega a sua mensagem: “Entendemos menos do que gostaríamos sobre como funciona a economia.” E completou: “O desafio para melhorar nosso entendimento e desenvolver novas ideias é para vocês – a próxima geração de estudantes e acadêmicos na London School of Economics e noutros lugares. Vão em frente.”

A leitura das reflexões de um competente economista, suportado pelo “crème de la crème” dos profissionais do departamento de pesquisa econômica do Banco da Inglaterra, é um antídoto às proposições apodíticas de analistas mais afoitos, que costumam afirmar o que deveriam demonstrar. Outro dia um deles discorreu com toda a segurança a respeito “dos efeitos sobre o consumo privado das despesas do governo” usando implicitamente um modelo muito conhecido. Ignorou, sob os olhos embevecidos do entrevistador que outro modelo, também respeitável sugere conclusão oposta. Trata-se, obviamente, de um problema empírico, mas o pior é que não há método econométrico que decida definitivamente a questão. Ao contrário do que se poderia pensar, a afirmação não é falta de conhecimento, mas produto do domínio da “antipatia” à política governamental.

É o caso, por exemplo, da pergunta intrigante se o Brasil está abandonando o famoso “tripé” da política econômica adotada em 1999, depois de termos nos socorrido às pressas do Fundo Monetário Internacional, e que não nos poupou de voltar a ele em 2002: 1º) política fiscal responsável que mantenha relativo equilíbrio e produza um superávit primário que reduza a relação dívida líquida/PIB a alguma coisa parecida com 30% do PIB; 2º) meta inflacionária de 4,5% (+ ou – 2%) e ainda; 3º) um sistema de câmbio flutuante. No período de 1999-2011 isso produziu: taxa de crescimento médio do PIB 3,4%; taxa de inflação média anual de 6,8%; déficit em conta corrente acumulado US$ 188 bilhões. Esses números estão longe de razoáveis quando comparados com outros países emergentes. Onde nossa diferença é significativa, é no esforço de “inclusão” social visto no gráfico 1 e na convergência da relação dívida líquida/PIB vista no gráfico 2, que têm tudo a ver com a política social feita sob o controle da política fiscal. O último mostra, aliás, a importância exagerada que se dá aos pequenos “desvios” entre o superávit primário programado e o efetivamente realizado, diante da tendência clara de queda da relação dívida líquida/PIB. O pecado do governo é tentar mistificá-los com a contabilidade “criativa” que lança dúvida sobre sua credibilidade. Mesmo usando o conceito de dívida bruta/PIB (59%), a situação é confortável. A aritmética preocupante é que o custo da dívida líquida é pouco sensível às variações da taxa Selic, uma vez que as reservas e os imensos créditos ao BNDES já somam um quarto da dívida bruta/PIB e rendem muito menos.

A crítica à política econômica do governo é bem-vinda

Os fatos não parecem indicar nenhum desvio mais importante na política econômica canônica que vimos usando com o necessário pragmatismo imposto pelas mudanças da realidade nacional e mundial. Um magnífico artigo de dois sofisticados economistas do nosso Banco Central (Sales, A.S. – Barroso, J.B.R. – “Coping with a Complex Global Enviroment”, W.P. 292, Oct. 2012) é leitura obrigatória sobre esse assunto.

A crítica à política econômica do governo é bem-vinda. É mesmo uma necessidade. Não é razoável supor que o simples fato de alguém estar eventualmente numa situação de “poder” lhe transfere o benefício da infalibilidade. Nem que, para o poder incumbente, a eleição por uma maioria eventual lhe confira a “onisciência” que exija a sua “onipresença”. Mas a crítica há de ser objetiva e honesta sobre a qualidade e eficiência dos instrumentos utilizados para atingir os fins que levaram os eleitores a escolhê-lo. A crítica “aos fins” termina na campanha eleitoral. A minoria há de conformar-se, por exemplo, quando a sociedade exagera na escolha de mais “inclusão” do que “crescimento” ou “estabilidade monetária”, o que – os economistas sabem – pode levar, no prazo médio, à perdição dos três! Nesse caso resta ao poder incumbente trocar o pneumático com o carro andando, ou ser dispensado na próxima eleição…

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras