Brasil gasta demais com funcionários públicos
Os gritos das manifestações de 2013 entraram nos discursos políticos destas eleições. A melhoria dos serviços públicos, mote maior das reivindicações das ruas, aparece com destaque nas falas dos principais candidatos. Uma pesquisa de abril do Instituto Data Popular mostra o tamanho da insatisfação: numa escala de 0 a 10, a educação recebe nota 4,6, a segurança nota 3,6, e a saúde 3,7 – esta, apontada como a principal preocupação do brasileiro, na pesquisa Visão Brasil 2030, feita por nove grandes organizações não governamentais.
Os postulantes à Presidência costumam tratar de maneira vaga a prestação dos serviços públicos. É “prioridade” na campanha de Dilma Rousseff (PT), “requer mais eficiência” para Aécio Neves (PSDB) e tinha de passar por “ganhos de produtividade” no discurso incorporado por Marina Silva (PSB). Não haverá melhoria fácil. Quaisquer mudanças relevantes, como diminuir o número de cargos ocupados por indicação, demitir funcionários ruins, contratar melhor e conter o gasto com aposentadorias, exigirão cooperação entre os Três Poderes. E resultará em confronto com um ou vários grupos de funcionários públicos – um terreno espinhoso em que sindicalistas e grupos políticos defendem interesses e regalias há muito conquistados.
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ÉPOCA levantou os dados e pediu a 16 pesquisadores, estudiosos do funcionalismo há anos, que identificassem os desafios a superar. A seguir, identificamos quatro grandes problemas: a má distribuição de funcionários pelas diversas áreas de governo, a irracionalidade dos pagamentos e benefícios, a burocracia para contratar, promover e demitir e o excesso de cargos por indicação. Confira as propostas dos candidatos a presidente – e cobre-as.
Falta professor, mas sobra chofer e assessor tem de sobra
O governo brasileiro tem dificuldades para acomodar suas despesas dentro dos limites do orçamento e para contratar gente para algumas áreas com carência de pessoal. Por isso, assusta o número de contratações desnecessárias, que pesam sobre as contas públicas e sobre os ombros do contribuinte. Cada deputado federal pode ter até 25 assessores, número alto demais diante de comparações internacionais. O jornal O Globo revelou que, no início deste ano, o Senado deu a sete garçons cargos de confiança, com atribuições de fachada, para permitir que eles recebessem salários mais altos. No escalão mais alto do governo federal, 39 ministros respondem diretamente à presidente da República, cada um deles com seu séquito de assessores. O normal, em nações desenvolvidas, é haver de 15 a 20 ministros (qualquer executivo de empresa de porte médio sabe que é impossível gerenciar bem 40 subordinados diretos, com funções complexas). Todos os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) têm direito a motorista particular. Isso não ocorre na Suprema Corte dos Estados Unidos. Nos Tribunais de Justiça, nos Estados, a gastança se repete. Em São Paulo, há 311 motoristas à disposição dos juízes. A Câmara Municipal de São Paulo tem 26 motoristas, 13 garçons, sete auxiliares de cozinha e ainda auxiliares de serviços odontológicos, cirurgiões-dentistas, barbeiros, oftalmologistas, lavador e lubrificador de veículos e vidraceiro, segundo o Portal da Transparência. Os casos revelam uma lógica de trabalho que dá prioridade ao luxo, ao privilégio, ao desperdício e à concessão de favores e boquinhas. Essa lógica se estabelece, nos gabinetes, em detrimento daquela com que a maioria dos mortais tem de lidar no dia a dia – a economia de recursos e o esforço para trabalhar melhor.
Casos como esses reforçam a impressão de que há excesso de servidores públicos. Eles são ao todo 11,1 milhões. Um em cada dez brasileiros em idade de trabalhar está empregado em algum governo. Essa fatia é normal entre países emergentes e fica abaixo da usual entre países desenvolvidos. Um relatório de 2013 da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE, grupo que inclui as nações mais desenvolvidas do mundo) informa que o número de funcionários públicos no Brasil “é bastante limitado” em comparação com o dos países-membros da entidade, mas também que é “mais caro”. O problema, portanto, não está na quantidade de funcionários públicos, mas na qualidade deles – e dos serviços que prestam.
Alguns dos serviços que se transformaram em alvos principais das críticas durante as manifestações do ano passado sofrem com falta de profissionais. É o caso da saúde. Mesmo após o início do Mais Médicos, que contratou 14 mil profissionais, uma auditoria feita em março pelo Tribunal de Contas da União (TCU) apontou falta de médicos e enfermeiros em 81% dos hospitais visitados do Sistema Único de Saúde. Faltam também policiais federais, fiscais ambientais, analistas tributários e professores. Outro levantamento do TCU mostra que, só no ensino médio da rede pública, há 32 mil vagas a preencher.
“A perspectiva não pode ser contra ou a favor de funcionário público. Tem de ser a favor do cidadão e da melhoria dos serviços”, afirma Regina Pacheco, especialista em gestão de políticas públicas da Fundação Getulio Vargas (FGV). “E, para aumentar a força de trabalho, teremos de segurar os custos.” O cidadão só contará com serviços melhores se o governo parar de fazer contratações e promoções inúteis, para se concentrar nas que realmente importam.
Gastamos demais para ter serviços ruins
Os gastos dos governos federal, estaduais e municipais com o funcionalismo público somam 12% do Produto Interno Bruto (PIB). Isso coincide com a média da OCDE, de acordo com um relatório sobre o Brasil. E serve de alerta. Se temos serviços públicos piores e menos funcionários públicos que os países desenvolvidos, por que gastamos tanto quanto nações bem mais ricas?
O sistema de aposentadorias, que ainda podem ser recebidas com o último salário integral, é o maior responsável, mas não o único. A estrutura de salários do setor público é irracional. Ela atende a pressões políticas, não à importância do serviço, à qualidade dele ou ao nível de instrução e conhecimento do funcionário. “A definição de quem ganha mais foi feita respondendo a grupos de pressão durante décadas. Isso criou diferenças injustificáveis”, diz o pesquisador Eneuton Pessoa, da UniRio. Na esfera federal, o salário inicial de um motorista ou de uma secretária do Ipea (R$ 4.930) é superior ao de algumas vagas de professor com doutorado no magistério (R$ 4.649). Um escrivão da Polícia Federal (R$ 8.416) só precisa ter curso superior, mas ganha mais que um médico com mestrado no Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (R$ 6.346).
Num estudo sobre o tema, Pessoa encontrou as raízes dessa desigualdade. “Quanto mais gente uma categoria tem, menores os salários e menores os reajustes”, diz. Por essa lógica, ganham mais os grupos menores e mais bem entrincheirados nos gabinetes. Entra na conta também o poder político de figuras específicas em certo período. “Na época do Márcio Pochmann (presidente do Ipea de 2007 a 2012), próximo do governo, o Ipea conseguiu alguns dos maiores aumentos”, diz Pessoa, também ex-funcionário do Ipea. O governo alega limites de orçamento – muito sólidos – para refrear pedidos de algumas categorias. Outras vivem numa realidade paralela, em que regalias nunca são demais. Os ministros do STF propõem aumentar seus salários de R$ 29.400 para R$ 35.900. Em setembro, o ministro Luiz Fux, do mesmo STF, concluiu que, como os integrantes do Ministério Público recebem auxílio-moradia, todos os juízes federais também têm de recebê-lo – um adicional de R$ 4.300 ao salário. Com esse teto, o benefício poderá ser estendido a juízes de instâncias inferiores. O episódio explica dois problemas fundamentais na lógica vigente em Brasília: 1) muitas autoridades fora da equipe econômica não se sentem responsáveis pela saúde das contas públicas; 2) quando se constata alguma diferença de direitos e benefícios, tende-se a igualar a situação com mais concessões, nunca com cortes e planos de redução. A mesma lógica que beneficia os pequenos grupos na cúpula prejudica categorias numerosas, de profissionais que lidam com problemas em campo e atendem o cidadão, como professores, médicos, assistentes sociais e pesquisadores. De acordo com Pessoa, a situação é mais grave nos Estados e municípios.
O governo federal gastou com pessoal R$ 202 bilhões em 2013, ou 4,2% do PIB. A proporção caiu nos últimos anos, embora ainda haja espaço para mais economia. O salário médio do funcionário público é de R$ 3.175, diante de R$ 1.817 na iniciativa privada. “É preciso igualar mais os salários aos do setor privado”, diz Raul Velloso, especialista em contas públicas. Os governos de Fernando Henrique Cardoso e Dilma Rousseff deram passos modestos nessa direção. Ambos concederam aumentos, permitindo a aproximação com os salários privados. Luís Inácio Lula da Silva fez o oposto. Seria possível alegar que há no setor público mais cargos de alta escolaridade. O Estado se coloca na posição de alvo, porém, ao contratar, por salários descolados da realidade, motoristas, secretárias e garçons.
Melhorar a situação exige resolver a equação das aposentadorias. Quase metade dos gastos com o funcionalismo federal vem delas. Em 2012, a presidente Dilma sancionou uma lei (enviada ao Congresso por Lula em 2007) que limitou a aposentadoria dos funcionários públicos ao teto do INSS, como ocorre na iniciativa privada. Para ganhar acima disso, o funcionário precisa contribuir com um fundo complementar. A novidade só vale para contratados após a vigência da lei. “O alívio nas contas só começará dentro de uns 20 anos”, diz o cientista político Fernando Abrucio. Mesmo assim, delegados da Polícia Federal foram à Justiça garantir a perpetuação das regalias atuais. Os Três Poderes deveriam se empenhar nessa luta para dar eficiência ao governo.
O governo contrata mal, usa mal quem contrata e nó demite incompetentes
Contratar o melhor candidato para a tarefa a cumprir, medir seu desempenho e dar incentivos para que ele aperfeiçoe o trabalho são o esforço diário de qualquer empresa privada média. No governo, parecem missões impossíveis.
Os entraves começam já nas provas dos concursos, muitas vezes inadequadas aos cargos oferecidos. “Hoje, um médico do Ministério da Saúde é avaliado por uma prova de múltipla escolha. Não há teste de habilidades práticas”, diz Fernando Fontainha, professor de Direito da FGV-Rio e um dos autores de um relatório que questiona a eficiência dos concursos públicos. Trata-se de uma indústria de R$ 50 bilhões ao ano, segundo a Associação Nacional de Proteção e Apoio aos Concursos. As provas foram criadas para evitar o favorecimento em entrevistas pessoais. Ficaram antiquadas. Uma boa seleção combinaria impessoalidade, medidas de experiência e conhecimentos teóricos. Em vez disso, elas exigem apenas quantidade brutal de conhecimento teórico, em troca do acesso a uma combinação de salário alto, estabilidade à prova de incompetência e aposentadoria melhor que no setor privado. Como resultado, parte da população em idade produtiva para de trabalhar e passa apenas a decorar conteúdo de concursos.
Falta também flexibilidade. A Constituição de 1988 estabeleceu um regime jurídico único para todos os servidores públicos. Ao contrário do que acontece em países referências, como Austrália ou Alemanha, no Brasil carreiras diferentes contam com o mesmo tipo de contrato. O cientista político Fernando Abrucio exemplifica a questão: “Imagine que o Theatro Municipal de São Paulo seja administrado com esse regime. A bailarina contratada teria de exercer a mesma função durante seus 30 anos de carreira. Isso não faz sentido.” Os governos têm dificuldade para contratar especialistas, como alguns tipos de médicos e administradores, para lidar com demandas específicas e missões temporárias. Por causa dessa dificuldade, recorrem a subterfúgios, como abrir empresas estatais para empregar novos funcionários ou contratar por meio de organizações sociais. “Quando Estados e municípios tentam tornar as contratações mais flexíveis, o Ministério Público e o Judiciário barram o concurso”, diz Abrucio. Vale a pena envolver a sociedade e o Congresso num debate informando sobre o assunto.
Outra forma de aumentar a eficiência do funcionalismo é criar mais escolas de excelência para formar gestores públicos. Colocados em cargos-chave, eles puxariam para cima a qualidade dos serviços. Foi o que fez Minas Gerais com a Fundação João Pinheiro, segundo Abrucio. Além dela, há apenas mais dois centros de excelência no Brasil: a Escola Nacional de Administração Pública e a Escola de Administração Fazendária, ambas no Distrito Federal. “São Paulo e Rio de Janeiro, pelo tamanho da máquina, poderiam ter suas próprias escolas de governo no modelo da Fundação João Pinheiro”, afirma Fernando Coelho, doutor em administração pública e professor da USP. A alternativa, também difícil, é contratar mais administradores com experiência comprovada no setor privado.
Outros problemas surgem depois da contratação. Ao ingressar no serviço público, o funcionário passa um período de três anos no estágio probatório, ainda sem estabilidade. A ideia, razoável, é poder dispensar os funcionários que não se mostrem bons o suficiente. “Mas o estágio hoje é uma piada. São raríssimos os casos de não contratar. Mesmo assim, nesses casos, o servidor ainda vai à Justiça e consegue mudar a decisão”, diz Regina Pacheco, da FGV. “É preciso fortalecer o estágio probatório e incluir avaliações cruzadas, avaliação dos colegas, do superior e dos próprios usuários do serviço”, afirma Abrucio.
Outro obstáculo é a dificuldade de recolocar os servidores contratados. “Se quero capacitar o funcionário para outro setor ou realizar um retreinamento, o governo não permite. É preciso contratar outro”, diz o consultor Raul Velloso. Ele afirma já ter sofrido com esse engessamento quando trabalhou no Ministério do Planejamento. Isso gera excesso de funcionários em algumas áreas e carência noutras.
O próximo governo fará bem se regulamentar o projeto de lei complementar que permite demitir funcionário público por mau desempenho. Em 2013, foram demitidos apenas 428 entre os 2 milhões de funcionários públicos federais, ou 0,02%. Não deve ser porque alguém considere excelente o trabalho feito em Brasília. Mesmo no seleto grupo das melhores empresas para trabalhar no Brasil, nenhuma demitiu tão pouco em 2013, segundo a consultoria GPTW. O advogado especialista em serviço público Rafael Marcatto considera o projeto bem-vindo, com a ressalva de que ele não deve discriminar categorias de servidores. Nelson Marconi, da FGV-EESP, afirma que a regulamentação da dispensa, a avaliação de desempenho e uma política de incentivos aumentarão o empenho dos funcionários e atrairão gente melhor para os concursos. “O salário é um incentivo para atrair para a carreira, mas não há incentivo para o sujeito se dedicar depois”, diz. O projeto de lei aguarda regulamentação desde 2007.
O Excesso de cargos de confiança abre brechas para a pressão política, corrupção e ineficiência
Há gente demais ocupando cargos por indicação no serviço público. Esse tipo de cargo, chamado comissionado, foi criado nos anos 1960 para dar flexibilidade à contratação. Com ele, o governo pode suprir áreas com falta de concursados. Mas a falta de critérios abriu caminho para um número de nomeações gigantesco, muito acima do que recomendam as boas práticas de administração pública.
Só em nível federal, o Brasil tem 22.700 pessoas ganhando salário segundo a escolha do presidente e de seus aliados. Os Estados Unidos, com estrutura de governo bem maior que a brasileira, têm 8 mil. Outros países têm menos ainda (leia no quadro abaixo). Nos governos estaduais, a proporção é ainda maior. São 115 mil indicados pelos governadores e seus aliados. O Estado de São Paulo tem quase o dobro da quantidade de comissionados que o governo federal dos EUA. O problema é ainda maior nos municípios, que abrigam meio milhão de indicados.
O excesso abre brechas para corrupção, ao criar um mercado de cargos em permanente leilão. Esses postos servem como moeda política para presidentes, governadores, prefeitos e legisladores. A negocição interminável de indicações tende a solapar o debate de ideias e o papel do Legislativo como fiscal do Executivo. Como as vagas ficam sujeitas a alianças partidárias renegociadas a cada eleição, a alta rotatividade prejudica a eficiência da gestão e os projetos de longo prazo. “A cada ano, 30% mudam de posição”, diz o pesquisador Felix Lopes, do Ipea.
Quanto maior o número de indicações políticas num órgão federal, menor a capacidade de o servidor fazer seu trabalho. A conclusão é de um estudo de 2013 com dados de 325 mil servidores brasileiros, liderado pela pesquisadora Katherine Bersch, da Universidade do Texas, nos EUA. “O efeito sobre a administração é devastador”, afirma Cláudio Weber Abramo, diretor executivo da ONG Transparência Brasil, que propõe limitar o número de cargos comissionados.
A questão é mais complexa do que parece. Cerca de 70% desses cargos são preenchidos com concursados. “Isso não elimina a influência. O próprio servidor sabe que, se não se acertar com o partido, não tem chance, porque alguém ligado à legenda vai chefiá-lo”, diz Abramo. Em 2011, a pesquisadora Maria Celina D’Araújo, da PUC do Rio de Janeiro, constatou que um quarto dos funcionários federais nos cargos comissionados federais de alto escalão eram filiados a algum partido. Desses, 80% eram petistas.
Dos quase 23 mil cargos federais, cerca de 9 mil são de médio a alto escalão e despertam mais interesse político. “Os outros não são moeda de troca. O PMDB não briga por eles. O PMDB quer o diretor do Dnit”, afirma Abrucio. Os cargos menores são usados com outros fins, como servir de atalho legal para gratificar funcionários ou agradar a eleitores. No entanto, diz Abrucio, boa parte desses cargos não precisaria ser comissionada. “Numa reforma administrativa, seria possível decidir quais cortar”, diz.
Os governos caminham na contramão da redução desses cargos. Desde 2003, os comissionados cresceram 23% na esfera federal, acima do aumento do total de contratados. Nos Estados, aumentaram cerca de 10% só de 2012 para 2013, únicos anos com dados organizados.
Há ao menos quatro propostas na Câmara dos Deputados para limitar o número de funcionários indicados. Não há previsão de votação. A mais antiga é de 2007. O senador Pedro Simon (PMDB-RS) já declarou que a aprovação “seria um milagre”. “Seria benéfico para o governo. Se não existissem tantos cargos a distribuir, a fome dos partidos também reduziria”, diz Abrucio. Para Abramo, essa deve ser a principal medida de uma reforma política e a que teria melhores chances de deter a corrupção e melhorar a eficiência do governo.