Dilemas da indústria brasileira: a necessidade de se articular o social e o produtivo

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Na última década, apesar da significativa expansão do mercado interno e do crescimento da economia, a indústria brasileira tem perdido dinamismo. Isto tem sido associado por alguns à apreciação cambial resultante da política macroeconômica e ao aumento dos preços das commodities resultante do chamado “efeito China”. Argumenta-se neste texto que estes elementos apenas parcialmente explicam um fenômeno que já se mostrava evidente nos anos 1980 e 1990.

No final do século XX, a indústria brasileira se defrontou com a necessidade de enfrentar a transformação sociotécnica associada à Revolução das TICs. Ao mesmo tempo, a aceleração da financeirização da economia global (e brasileira) e a reorganização das atividades produtivas pelas empresas transnacionais – cada vez mais subordinadas à lógica das finanças – adicionam desafios à estrutura produtiva brasileira. A explosão do desenvolvimento chinês ao longo dos anos 2000 e a geração de saldos respeitáveis na balança comercial brasileira apenas adiaram o enfrentamento destes problemas.

A crise mundial atual iniciada em 2007-2008 e seus desdobramentos agravam esta situação e adicionam novas especificidades. O conjunto de políticas adotado pelo Brasil no enfrentamento da crise – com destaque para a atuação incisiva dos bancos oficiais – foi fundamental para garantir a sobrevivência financeira das principais empresas brasileiras. Porém, perdeu-se a oportunidade de aproveitar o momento para promover alterações no desenvolvimento produtivo nacional na direção de um paradigma produtivo menos intensivo na exploração de recursos naturais. Mais recentemente, as mudanças na geopolítica associada aos desdobramentos da crise e introduzidas pela formação de alianças como a dos BRICS trazem novos elementos e pressões externas que não podem ser ignorados ao se discutir os desafios atuais da indústria.

A partir de 2003, no Brasil, o sucesso das políticas de inclusão social, a melhoria na distribuição da renda e a dinamização do mercado de trabalho transformaram positivamente o país o que torna também muito mais complexo o debate sobre a estrutura produtiva. Por um lado, os indicadores e análises tradicionais apontam para uma situação preocupante. A participação do valor adicionado da indústria de transformação no PIB que cresceu de 19,8% em 1947 a 35,9% em 1985, vem perdendo terreno, caindo para 18% em 2003 e 13,1% em 2013. Dentro do tecido industrial, ocorre também uma diminuição da importância relativa das atividades de alta tecnologia. O VTI do conjunto das tecnologias de informação e comunicação que representava aproximadamente 1,4% do PIB em 2000, cai para 0,97% em 2005 e 0,4% em 2011 (entre 2008 e 2010, nos Estados Unidos, o peso das TICs no PIB era de 9% e na União Europeia, oscilava entre 5% e 7%).
Observa-se também tanto o esvaziamento progressivo dos sistemas produtivos e inovativos brasileiros em geral e nas atividades de alta intensidade tecnológica em particular (aproximadamente 70% da demanda final brasileira era suprida por importações em 2008), quanto a deterioração crescente na balança comercial de manufaturados (as atividades de alta e média-alta tecnologia foram responsáveis, em 2013, por déficit superior a US$ 90 bilhões).

Desindustrialização e perda do tecido industrial são acompanhados por uma significativa desnacionalização da estrutura produtiva. O estoque de capital estrangeiro na indústria brasileira aumentou de US$ 32 bilhões em 2000 para US$ 221,8 bilhões em 2011, representando 30% do PIB. Nas atividades de alta e média-alta tecnologias, o aumento foi de mais de 300%. Nos anos recentes, apesar do enorme estímulo fiscal às atividades produtivas maiormente dominadas por subsidiárias de ETNs observamos uma paralisação nos investimentos e explosão na remessa de lucros ao exterior. Dados do Banco Central indicam que as remessas que oscilavam em torno de US$ US$ 5 bilhões ao ano entre 1995 e 2006, passam a gravitar em torno dos US$ 25 bilhões ao ano a partir de 2007.

Por outro lado, o território brasileiro e sua estrutura produtiva têm sido revolucionados pelo desenvolvimento de inúmeros arranjos produtivos locais (APLs). Impulsionados pelos projetos de infraestrutura e dos programas sociais e de interiorização da educação, capacitação e formação técnica, APLs especializados em atividades da agroindústria, bens de consumo não duráveis, economia da cultura, dentre outros, têm proliferado, aumentando a renda no território e permitindo inúmeros processos virtuosos de transformação. Entretanto, tais processos por diversas razões colocam-se fora de alcance das lentes tradicionais de captação de fenômenos produtivos e inovativos, e consequentemente de seus correspondentes indicadores. Assim a deterioração da estrutura produtiva brasileira é acompanhada por fenômenos de transformação produtiva que permanecem praticamente invisíveis.

Tais mudanças ocorrem paradoxalmente num período em que a política industrial é reintroduzida na agenda brasileira, com o mercado interno aumentando de forma significativa. Além da tendência a imitar, sem a necessária adequação, os modelos, agendas e instrumentos de política gerados em outros contextos, os objetivos e instrumentos da política industrial têm-se dissociado daqueles das políticas de desenvolvimento social. A política social foi capaz de incluir na economia e na sociedade milhões de brasileiros que se tornaram cidadãos e consumidores com demandas muito claras e intensivas em inovações. Demandas de melhores condições de vida e cidadania – alimentação, saúde, educação, habitação, transporte, saneamento, cultura, dentre outras – exigem capacitações produtivas e inovativas, assim como soluções e novas tecnologias específicas aos diferentes territórios.
Os ajustes macroeconômicos ora em implantação impactam negativamente a política produtiva e os dois conjuntos de sistemas produtivos acima apontados. Para que não se percam os ganhos obtidos na última década e que se recupere a estrutura produtiva, é necessário uma agenda de política industrial e tecnológica capaz de fazer convergir os objetivos do desenvolvimento brasileiro em suas múltiplas dimensões, colocando a socioambiental no centro das prioridades. Com isto, uma série de possibilidades para reforço de trajetórias benignas e autorreforçadoras de desenvolvimento podem ser vislumbradas.

Uma primeira grande oportunidade consiste em estimular o desenvolvimento de arranjos produtivos e inovativos locais relacionados à ampliação da qualidade e da provisão dos serviços públicos essenciais, como aqueles elencados pelo Plano Brasil Sem Miséria. Nesta perspectiva, a política de desenvolvimento industrial e tecnológico deveria ser maiormente orientada para a mobilização e o adensamento de capacitações, atividades e sistemas produtivos e inovativos centrados na provisão de alimentos, saúde, educação, habitação (com saneamento e acesso a água e energia), tratamento de resíduos sólidos, mobilidade, cultura, dentre outros serviços públicos.

Um segundo vetor de oportunidades dessa maior integração e fortalecimento da política de desenvolvimento deriva de sua capacidade de mobilizar as vantagens oferecidas pelo vasto território brasileiro. Apesar das conquistas obtidas com a descentralização dos recursos, as políticas industrial e de inovação ainda incorporam uma visão ultrapassada do ponto de vista espacial. Por exemplo, ambas ainda colocam a questão regional apenas como um apêndice compensatório, e o enfoque setorial ainda é pensado de forma desterritorializada. Uma política visando a mobilizar capacitações e sistemas produtivos e inovativos locais poderia beneficiar-se e contribuir para consolidar os avanços da implantação das novas estruturas de ensino, pesquisa e geração e difusão de conhecimentos no território nacional: os institutos federais, as universidades públicas regionais e os centros vocacionais tecnológicos.

O novo paradigma da sustentabilidade encontra no Brasil, talvez, o seu maior potencial de realização, dadas as nossas especificidades socioambientais e culturais. Na implementação de uma nova política para o desenvolvimento, a seleção de áreas consideradas estratégicas e portadoras de futuro deveria contemplar, em primeiro lugar, aquelas de maior impacto na nossa economia e sociedade: alimentação, saúde, educação, habitação, saneamento, mobilidade, etc. Além de estimular o surgimento e fortalecimento de novas atividades e atores produtivos, contribuindo para inaugurar adequados espaços de desenvolvimento, tais propostas apresentam potencial para resolver algumas de suas mais graves distorções e mais prementes ameaças: as desigualdades sociais e territoriais, a desindustrialização e a escalada das importações.

NOTA
Este artigo representa as opiniões pessoais dos autores e não necessariamente dos organismos em que trabalham.

* José Eduardo Cassiolato

Doutor em Economia pela Universidade de Sussex da Inglaterra, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e presidente do comitê científico da Rede Globelics – Global Research Network on the Economics of Learning, Innovation and Competence Building Systems.

* Helena Lastres
Ph.D. em ciência, tecnologia e industrialização, SPRU/University of Sussex, mestre em Engenharia da Produção, Coppe/UFRJ e economista FEA/UFRJ. Professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação, PPCI/UFRJ (Convênio CNPq/IBICT-UFRJ/ECO).