‘O Planejamento é mais importante que a Fazenda’

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O sr. é um crítico do ajuste fiscal implementado pelo ministro Joaquim Levy. Qual é o motivo principal? 

Esse ajuste fiscal vai retirar dinheiro do sistema, porque está ligado aos “dez mandamentos da lei de ortodoxia econômica”. Ao se começar o ajuste, retira-se dinheiro do sistema, que compõe uma demanda agregada. Ao se subtrair moeda do sistema, vai-se diminuir o poder de compra e a liquidez do sistema, e a oferta de moeda cai. Acoplado ao ajuste, vêm outras reações, como o aumento do depósito compulsório dos bancos. Trabalhei no Ipea, no BNDES, até no gabinete do ministro Roberto Campos, e tive a oportunidade de ver qual é a repercussão sistêmica de tudo isso. Após esse aumento do depósito compulsório — que vai acontecer por conta da redução e encarecimento do crédito, já que o dinheiro tem um preço —, você vai perceber que o aumento da taxa de juros vai afetar a velocidade de renda a curto prazo, inibindo o investimento. A taxa de juros não resolve nenhum problema de inflação. Existem vários tipos de inflação. Ela vai inibir a dos bens supérfluos e, principalmente, alguns projetos cuja taxa de retorno estão em torno de 14%, 15%, porque, com a taxa de juros rondando os 13%, ninguém vai investir volumes dessa natureza.

Na visão do governo, o ajuste seria necessário para corrigir um desequilíbrio das contas públicas. O sr. discorda?

Sim. Que ajuste é esse? Está colocado? Que contas estão desnorteadas? Ajuste não significa cortar verbas para várias áreas. Eu ouço dizerem que “o governo deve cortar seus gastos”. Isso não tem sentido. O governo deve melhorar os seus gastos, isso sim vai ter um efeito extraordinário e multiplicador na renda nacional. Quando se corta gastos, tira-se dinheiro do sistema. 

Em que medida? 

Observe os resultados dos pequenos gastos cortados agora no Ministério da Educação, que afetaram a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Estamos sem limpeza, segurança. O Congresso Nacional deve estar com um gasto de R$ 9 bilhões, ou em torno disso, e o orçamento da universidade deve estar em R$ 438 milhões. O Congresso, com aqueles prédios e o número de pessoas lá dentro, que deve ser mais ou menos o número de professores da UFRJ, gasta R$ 9 bilhões, e nós estamos com esse orçamento. E quase metade de nossa verba é gasta com serviços terceirizados, cujas empresas desempregaram todos. 

O sr. afirmou que, em reunião recente em Dublin, os economistas estrangeiros mostraram certa estranheza com a opção feita pelo Brasil.

Até mesmo um colega meu da UFRJ, César das Neves, que era apoiador das ideias de Cavaco Silva (economista e atual presidente de Portugal) e foi colega dele na York University, ficou surpreso com o número de desempregados agora, em Portugal. Como jornalista, ele mesmo ficou desempregado. Ele diz que entende que, hoje, no politicamente correto, tudo é admissível. E fala que a mídia na Europa, de alguma forma, está muito associada ao poder, com amplo domínio sobre a opinião pública e estreitas relações com o poder econômico. No nosso caso, eu fiquei preocupado, principalmente, quando ele coloca que o ministro das Finanças é imposto pelo mercado. Essas medidas estão vindo do mercado. Mas o próprio mercado nunca se definiu bem. O Brasil cresce 0% e um banco tem lucro de 26%. Há de se convir que quebrou toda a correlação existente de crescimento homogêneo.

A escolha de Levy não teria sido da presidenta, então? 

Eu acredito que foi para agradar ao mercado, porque ele tem uma formação… Levy é engenheiro. Por isso afirmei que, no Brasil, colocam as pessoas erradas nos lugares errados. O engenheiro quer ser economista; o economista quer ser cientista político; o cientista político quer ser filósofo, e o filósofo quer ser Deus. Então, estamos com um problema muito sério.

Para o sr., o ministro Levy é uma escolha errada?

Não, eu acho que ele é um sujeito competente. Mas a primeira coisa que se deve fazer é manter as conquistas. Nós conseguimos ser, segundo pesquisas, o 20º país de consumo do mundo. Em Dublin, os economistas estavam impressionados com as medidas que poderiam fazer esse estágio de avanço regredir. Não tinha sentido, porque eles estavam sob a troika (Comissão Europeia, BC Europeu e Fundo Monetário Internacional) e nós estávamos inventando uma austeridade na qual nada estava claro, em termos de estatística econômica. Mesmo as contas nacionais, o que vai arrumar? É cortar na educação, na saúde, na segurança. Cortes dessa natureza são delituosos. A primeira coisa que o Levy deveria fazer era uma modelagem garantindo o que já se conseguiu. Aí, ele pode arrumar a casa, sim, mas não fazer com que haja regressão.

Basicamente, seria cortar despesas em outros setores?

Não cortar os gastos, mas melhorar a qualidade dos gastos. Com isso, aumenta-se o multiplicador na renda nacional dos gastos do governo, que é tão importante quanto consumo e investimento. Com relação ao investimento, é interessante que, nas estatísticas, ele ficou estagnado em 18,5%, com tantas obras no Brasil. Eu nunca entendi isso. E olhe que tanto o chefe das Contas Nacionais como a presidente do IBGE foram meus alunos na Coppe…

Sem falar dos aportes do BNDES, cada vez maiores…

Sim. E você pode escrever: ninguém sabe qual é o PIB nacional. É tão difícil entender a magnitude do PIB, que basta mudar a metodologia para que ele se altere. O PIB é o quê? Uma figura abstrata? Na realidade, o Brasil está à frente da Inglaterra na formação bruta de capital. Só que a desvalorização do real nos joga para trás. Nossa posição no mundo está dependendo da desvalorização ou valorização do real. Não é um problema de produção.

E a elevação da taxa de juros, que deve continuar?

A taxa de juros não combate a inflação. Há vários tipos de inflação, e nenhuma delas é tocada pela taxa de juros. É lógico que, a longo prazo, ela vai conseguir frear tudo, não só os preços. Altas dos juros são importantes para gerar excedentes para a classe alta e rica. Vai gerar esse excedente, mas criar um problema. No segundo ano, a gente já ensina para os alunos que a taxa de juros tem uma correlação inversa ao investimento. O investimento ainda tem o problema do risco e da maturação. A taxa de juros regula tanto o mercado financeiro, quanto o produtivo. Quando ela aumenta, tira dinheiro do sistema produtivo e vai para o financeiro. A taxa de juros serve para atrair um capital especulativo. Isso faz com que os fundos dos Estados Unidos e da Europa que aplicam dinheiro fiquem exultantes, porque a taxa de juros facilita a captação de recursos que não são, necessariamente, voltados para o investimento. Ainda se faz confusão quando se compra uma empresa nacional, diz-se que foi um investimento, quando foi uma transferência. É uma série de erros conceituais, que é importante discutirmos. O Brasil Econômico é um dos jornais que eu levo para sala de aula para discutir. Tem outros que nem vale a pena, porque os erros conceituais são de tal ordem, que os alunos vão ficar preocupados. 

Mas a elevação dos juros vai ajudar a combater a inflação?

De jeito nenhum. Tem vários tipos de inflação. A taxa de juros combate a dos bens supérfluos e inibe o investimento. Ninguém que tenha uma taxa de retorno de 14%, 15%, que é mais ou menos o normal de um volume muito grande de recursos, arrisca-se a fazer esse investimento com uma taxa de juros perto de 13%. Eu sou responsável pela área de projetos da Coppetec, e já vi que vamos perder uma série de projetos nesse caminho. Eu tenho que ficar quieto, para não aconselhar o indivíduo que tem R$ 500 milhões para aplicar a ir para o mercado financeiro. E o projeto envolve estudo de mercado, escala, localização, um conjunto de riscos e o prazo de maturação do investimento. Fala-se que o Estado tem que sair e o mercado entrar. Se o Estado sair, até as multinacionais que usam os recursos disponibilizados pelo BNDES não terão mais onde pegar dinheiro.

O erro do governo seria de diagnóstico ou da dosagem do remédio? 

Você citou a palavra mágica: diagnóstico. Nos anos 70, eu estava trabalhando no BNDES e fui convidado pelo João Paulo dos Reis Veloso para coordenar uma parte do planejamento regional para o Plano Nacional de Desenvolvimento. Era no Epea (Escritório de Pesquisa Econômica Aplicada), o gabinete de suporte ao ministro do Planejamento na época, Roberto Campos. O que se fez antes de qualquer tomada de decisão do Planejamento? Um diagnóstico completo do Brasil. Você não pode tomar nenhuma medida sem diagnóstico. Tem que ver como está o Nordeste, o Sudeste, o Centro-Oeste e fortalecer as instituições de fomento regional. No plano que fiz tanto para o Brizola quanto para o Cristovam Buarque, a ênfase era regional, no sentido de canalizar os investimentos para as regiões cujos recursos locacionais eram mais adequados. E evitar que os incentivos fiscais distorcessem o encaminhamento dos investimentos para recursos locais. Isso, realmente, não aconteceu e os incentivos se perderam naquela ocasião. De São Paulo, investia-se em empresas no Nordeste que deveriam estar melhor em São Paulo. Os recursos iam do Sudeste/Sul para o Nordeste, em escala muito maior, porque eram projetos novos, mas o mercado estava aqui. Além da rede bancária comercial, que agia como uma ventosa. Quando se coloca recursos em um banco regional, eles têm que ficar lá para sustentar o produto lá gerado. Mas a rede bancária traz os recursos para as regiões de maior rentabilidade do capital, porque não há uma legislação de manter os recursos no local.

E a resistência do Congresso em relação às medidas de ajuste?

São reações políticas, muito de interesse pessoal. Eles não estão combatendo as medidas do governo com uma sustentação teórica, consistente, apenas politicamente. Veja o que vai acontecer com a demanda: a desvalorização cambial torna os produtos mais baratos para os consumidores estrangeiros, o que poderia vir a estimular as exportações, mas a indústria brasileira não consegue nem se apropriar disso. Se as exportações fossem estimuladas, diminuir-se-ia ainda mais a oferta interna. E a desvalorização cambial encarece as importações. A própria indústria, que pediu que o dólar se valorizasse, está com problemas na importação de insumos e componentes. Realmente as ações não são feitas com planejamento. Era algo que o João Paulo dos Reis Veloso fazia com grande sabedoria.

O sr. acha que, hoje, está se tratando apenas de um problema de caixa? 

Um problema de caixa, pontual, sem considerar que o processo é sistêmico. Nenhuma medida fica impune. A autoridade monetária vai promover uma retração monetária através de venda de títulos públicos no mercado, algo que está dentro desse pensamento neoliberal. Ela retira mais moeda de circulação e vai desidratar ainda mais a demanda agregada e, assim, desaquecer a economia. Observe um paradoxo: a teoria neoliberal se fixa neuroticamente na inflação de demanda, como a indústria não responde, não se sensibiliza, vai se diminuir a inflação, diminuindo a quantidade de pessoas que vai ficar no mercado pressionando a oferta. Quando se diminui a demanda, com essas medidas, o sistema produtivo começa a apresentar capacidade ociosa e a capacidade ociosa está ligada ao custo médio. Logo, combate-se inflação de demanda e gera-se inflação de custo. Você vai perceber a coisa ficar mais apertada quando o comércio começar a fazer liquidações. No momento em que ele liquida, ele não faz renovações ao sistema produtivo, que vai começar a fazer estoques e a ter custos de estoques e capacidade ociosa, porque ele não vai continuar produzindo quando o mercado está liquidando. É um fenômeno quando se começa a adotar políticas neoliberais.

E isso vai acontecer?

Já aconteceu nos anos 90, por que não iria acontecer agora, se as medidas seriam as mesmas? Os bancos também podem perder fontes de recursos, que financiam operações de crédito de longo prazo. Nem sempre as condições internacionais permitem tomar dinheiro no exterior e os bancos menores terão problemas. Quando grandes bancos têm lucros absurdos em momentos em que o país não cresce, alguém tem que prestar atenção a isso.

Neste cenário, sua previsão para a economia em 2015 e 2016 é de recessão?

Não chega a ser recessão, é um desaquecimento. Digo para os meus alunos que o desaquecimento é quando o cara da esquina fica desempregado. Recessão é quando teu vizinho fica desempregado e depressão é quando você fica desempregado. É uma brincadeira, sem nenhum sentindo teórico, mas eu não tenho dúvida de que o pessoal de CLT vai ter problemas. Eles terão que aumentar a produtividade. E a produtividade que o pessoal conhece para tentar readquirir é através da reengenharia. E se voltarmos com a reengenharia, vamos acabar com a solidariedade dentro das empresas. A reengenharia faz com que saiam 10 caras e 4 passem a tocar o barco. Eu tenho medo dessa volta. Espero que Levy consiga equilibrar isso, na medida em que faça um diagnóstico correto, para tomar ações corretas, e não pontuais. Porque o ambiente é sistêmico e nada fica impune. Vai ter repercussões.

Que repercussões seriam essas?

Vai haver redução sistemática da oferta de dinheiro, independentemente da taxa de juros. Essas medidas vão deslocando a demanda agregada para baixo e para a esquerda. Isso vai fazendo com que o sistema produtivo se equilibre num preço menor, mas como a capacidade ociosa gera custos mais altos, algumas empresas vão quebrar. Não se pode abaixar preços em cima da demanda. E as empresas vão se adequar à nova demanda, com a redução de sua capacidade de produção. Mas o período de capacidade ociosa fará com que muitas empresas não consigam cobrir seus custos em função dos preços que se praticam no mercado.

Podemos ter aquelas falências purificadoras no mercado? 

Sem dúvida nenhuma. O aumento de impostos tem uma certa inércia até atingir a demanda, mas a atinge.

Esse cenário todo contribui para a tensão reinante que estimula manifestações como as de sexta-feira e domingo?

Acho que há uma ignorância comovedora nesse meio. De várias pessoas, inclusive em vários níveis, que me impressiona. Me parece que essas manifestações vão misturar ideologias, só vão gerar mais inquietação. É o pessoal da CUT e mais à esquerda não concordando com as medidas, e os outros não concordando com a presidente. As pessoas ouvem as notícias e não têm capacidade de interpretá-las. 

Mas essa insatisfação que se vê não está ligada ao atual quadro da economia? 

A moça que trabalha na minha casa ia de ônibus para o Nordeste e, agora, vai de avião. Hoje, quando se vai ao sertão de Mandacaru, se encontra motos no lugar de jegues. Acho que houve uma mudança extraordinária.

O grande foco de oposição hoje do governo não é o Nordeste, é São Paulo, com um padrão de vida diferente e um grande polo industrial…

Sim. Um grande polo industrial que vai correr riscos também. A partir do momento em que a demanda cair, essa queda se generaliza. Um comerciante que vende produtos naturais me disse que a demanda dele já caiu 10%, porque não é uma demanda de bem essencial. Mas não me consta que o nosso amigo do Morro do Salgueiro diga para a mulher não comprar feijão porque a taxa de juros está alta. A inflação que nos interessa combater é a de bens essenciais. Nós fizemos vários armazéns para estocar alimentos, grãos. Fizemos um projeto pela Coppe para o Porto de Sepetiba no mesmo sentido, de usar o porto para dinamizar regiões de áreas de influência.

Em discurso pelo Dia Internacional da Mulher, a presidenta reconheceu que havia motivos para irritação de parte da opinião pública. 

Eu gostaria de saber em que ponto estão as insatisfações com a economia. Se é uma influência pela publicidade disso ou se sabe, exatamente, o que é. O povo de uma maneira geral não distingue nada. Não que ele seja ignorante, ele vai pelas opiniões. Como foi o caso do meu colega, o PhD, que repete que a “economia está uma droga”. Nada está bem esclarecido. E se fizermos um retrospecto e uma comparação temporal, nós nunca estivemos tão bem.

Esses problemas da economia de hoje seriam circunstanciais, como a presidenta classifica?

Eles não são só circunstanciais, são também da não organização do sistema econômico por parte do governo. Há ministérios exageradamente. Acredito que o Ministério da Fazenda tem que ter consonância com o Ministério do Planejamento. É o Ministério do Planejamento que define metas de crescimento e de desenvolvimento. Mas, em nosso país, isso nunca aconteceu. Sempre existiu um ministro de cortes e os restantes são contemplativos. Onde está o plano de metas dessas novas medidas que vão ser tomadas? Quando você toma medidas restritivas, tem que ter medidas compensatórias. É preciso apresentar um horizonte ao empresário. O Planejamento é mais importante que a Fazenda, que trabalha com política fiscal e monetária. É muito fácil se trabalhar com fórmulas de bolo. Se têm 10 medidas que vão levar ao desaquecimento e, se não tomarmos cuidado, esse desaquecimento vira recessão e depois cai na depressão, sem necessidade. Nós chegamos à classe média como o 20º país no mundo de consumo. Isso deve ser mantido. O que tem que ser incentivado é o setor industrial se reorganizar. Porque ele foi muito dirigido por incentivos fiscais e se localizou mal, se dimensionou mal e, hoje, não tem capacidade de competir. O governo pode dar qualquer tipo de incentivo que o setor não anda. E, agora, tirando as medidas favoráveis, vai ficar em uma situação pior.

O sr. falou do estímulo ao consumo. Esse modelo de crescimento seria viável ainda?

O consumo é fundamental. O que tem que ser feito é um diagnóstico do sistema produtivo.

No atual ambiente de negócios, se o sr. fosse empresário, investiria?

Em inovação, sem dúvida. E usaria a universidade. O que nós fazemos aqui, ninguém sabe. O trem de levitação magnética, a robótica submarina, a energia das ondas, a energia solar: projetos maravilhosos da Coppe. Hoje, se eu digo que sou cientista, o banco não me dá crédito.

O sr. acredita que a economia vai entrar nos eixos em 2016?

Vai depender de como vai ser atacado o programa de incentivos às indústrias para desenvolver pesquisas na área tecnológica e inovação.