Do direito de greve na OIT

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O tema da greve e dos crescentes obstáculos ao seu exercício enquanto direito coletivo, não se tem colocado apenas no Brasil. Desde 2012 que ocorre na OIT uma ofensiva patronal que procura dissociar esse direito da liberdade de associação sindical

28/07/2014

 

Hugo Dias

 

A Organização Internacional do Trabalho

Como é de conhecimento comum, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) é uma agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU) que se dedica às questões do trabalho. Originariamente fundada em 1919 pelo Tratado de Versalhes, que determinou o fim da Primeira Guerra Mundial, assume grosso modo a sua atual configuração no pós Segunda Guerra Mundial.     

Esta é composta por 185 estados-membros e é a única agência internacional que possui uma estrutura tripartite, com representação dos governos, organizações de empregadores e organizações de trabalhadores, tendo como missão o desenvolvimento de um sistema de normas internacionais sobre o trabalho que assumem a forma de convenções e recomendações. Enquanto que as primeiras constituem tratados internacionais sujeitos a ratificação pelos Estados Membros da Organização, os segundos constituem instrumentos não vinculativos, que definem orientações para a adoção de determinadas práticas nos contextos nacionais. Até ao momento existem mais de 180 convenções e mais 190 recomendações sobre uma enorme variedade de temáticas.

A estrutura de Governo da Organização é menos conhecida dada a sua complexidade. De forma muito sintética, e apenas com o propósito de permitir uma melhor compreensão da forma como se processam as decisões no seu seio, a OIT possui um Conselho de Administração tripartite que elege um diretor-geral a cada cinco anos, e duas organizações especializadas que lidam especificamente com assuntos dos trabalhadores e dos empregadores. Cada país membro deve apresentar periodicamente um relatório sobre as medidas adoptadas com vista à aplicação efetiva das convenções por si ratificadas. Este relatório é enviado quer às organizações de trabalhadores e empregadores, quer à Comissão de Peritos para a Aplicação das Convenções e Recomendações, um órgão constituído por vinte personalidades nomeadas a título pessoal. A Comissão de Peritos apresenta um relatório à Conferência Internacional do Trabalho, que se realiza todos os anos durante o mês de junho, e que é examinado pela Comissão da Conferência para a Aplicação das Convenções e Recomendações, um órgão igualmente tripartite. Cumulativamente, as organizações de trabalhadores e de empregadores, ou mesmo estados membros, podem elaborar reclamações que, se consideradas admissíveis pelo Conselho de Administração, darão origem à criação de uma comissão de inquérito.

Uma das Convenções fundamentais é a número 87 – Convenção sobre a liberdade sindical e proteção do direito de sindicalização – que entrou em vigor em 1948 e que estabelece o direito de todos os trabalhadores e empregadores de constituir organizações que considerem convenientes e de a elas se afiliarem, sem prévia autorização, e dispõe sobre uma série de garantias para o livre funcionamento dessas organizações. A OIT criou ainda, em 1950, um procedimento de controle especial, baseado nas queixas apresentadas contra um país membro, mesmo que este não a tenha ratificado, visto o princípio da liberdade de associação estar consagrado na própria Constituição da Organização. O mecanismo estabelecido neste domínio comporta dois órgãos distintos: a Comissão de Investigação e de Conciliação, e o Comité da Liberdade Sindical, que é um comité tripartite nomeado pelo Conselho de Administração de entre os seus próprios membros.

O direito de greve em questão

Antes da realização da Conferência Internacional do Trabalho de 2012, como é habitual, os porta-vozes do Grupo de Empregadores e de Trabalhadores reuniram para finalizar uma lista de 25 casos retirados do relatório anual da Comissão de Peritos com vista a serem discutidos pela Comissão da Conferência para a Aplicação das Convenções e Recomendações. Nessa reunião o Grupo de Empregadores recusou a integração de qualquer caso que contivesse observações relativas ao direito de greve.

O seu argumento central é o de que, dada a ausência de qualquer referência explicita ao direito de greve no texto da Convenção nº 87, a sua interpretação deveria excluir qualquer referência a este. No entanto, ao longo das últimas décadas, os representantes patronais nunca colocaram em causa a jurisprudência da OIT em relação ao direito de greve.  Tal sempre foi aceite, com base sobretudo no artigo 3º, ponto 1 da Convenção 87. Este define que “as organizações de trabalhadores e de empregadores têm o direito de redigir seus estatutos e regulamentos administrativos, o de eleger livremente seus representantes, o de organizar sua administração e suas atividades e o de formular seu programa de ação”. O entendimento comum, e nunca antes questionado pelos empregadores, era o que, dentro dos meios disponíveis para prosseguir o plano de ação dos sindicatos estava incluído o direito de exercício da greve.

A visão trazida pelos empregadores baseia-se numa interpretação conservadora que restringe a liberdade de associação à liberdade individual de cada um de aderir a uma organização. No entanto, o prosseguimento dos interesses dos trabalhadores, de forma a contrabalançar o diferencial de poder contido na relação contratual de emprego, implica o recurso a lógicas de ação coletiva das quais o direito à greve faz parte integrante. 

Esta posição manteve-se na recente Conferência Internacional do Trabalho, de Junho de 2014. O objetivo do Grupo de Empregadores é claro. Muitas decisões favoráveis em tribunal em muitos países têm-se baseado na interpretação da Comissão de Peritos e das decisões tomadas por consenso da Comissão da Conferência para a Aplicação das Convenções e Recomendações. A quebra desse mesmo consenso visa colocar em causa a visão de que o direito de greve esteja incluído na Convenção 87.

É por isso que o próprio presidente do Grupo de Trabalhadores do Conselho de Administração OIT, Luc Cortebeeck, admite que este tema terá que ser discutido no próprio Conselho de Administração, com recurso, caso uma maioria o solicite, para o Tribunal Internacional de Justiça.

O tema da greve e dos crescentes obstáculos ao seu exercício enquanto direito coletivo, não se tem colocado apenas no Brasil. A convenção 87 nunca foi ratificada pelo Brasil, em virtude da manutenção do princípio da unicidade sindical consagrado nos artigos 8º, inciso V, da CF/88 e 516 da CLT. Mas parece evidente que esta ofensiva patronal contra o direito de greve diz respeito a todos, e constitui uma disputa que pode ter consequências concretas para as lutas sindicais em muitos países um pouco por todo o mundo.

* Hugo Dias é pesquisador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e do CESIT e pós-doutorando em Economia na UNICAMP