País tem orçamento paralelo de R$ 240 bi

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Autor(es): VICTOR MARTINS

A criatividade contábil da equipe econômica do governo Dilma Rousseff mergulhou o país em uma confusão orçamentária. Em vez de um único Orçamento, os gestores públicos têm dois para executar: um aprovado pelo Congresso Nacional, que normalmente é ignorado; outro formado por restos a pagar de anos anteriores. A peça alternativa, em 2014, pode chegar a R$ 240,1 bilhões — o equivalente a pouco mais de 5% do Produto Interno Bruto (PIB) e suficiente para governar com o mínimo de interferência de parlamentares.

A pouca clareza no plano fundamental de despesas para o ano levanta ainda mais questionamentos sobre os já criticados indicadores fiscais do Brasil. A situação dá também munição para críticos que defendem o rebaixamento da nota soberana brasileira, o que pode ocorrer no meio da campanha eleitoral que se encerrará em outubro. Os R$ 240 bilhões em restos a pagar para 2014 é uma projeção do Contas Abertas, uma organização não governamental. Caso o valor se confirme, será um recorde e, em termos nominais, representará uma expansão de 1.200% ante 2003, o primeiro ano de mandato de Lula.

“O governo que pratica um despautério desses, de criar um orçamento paralelo monstruoso, não tem moral para exigir o cumprimento da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)”, critica o economista Paulo Rabello de Castro, coordenador do Movimento Brasil Eficiente. “Isso comprova que há sérios problemas de gestão pública, como também dificuldades para executar investimentos”, diz. Para o consultor econômico Raul Velloso, os restos a pagar não são um problema, desde que os valores sejam mínimos e que a composição deles tenha qualidade, com mais despesas de investimento do que outros gastos, o que não é o caso.

Radiografia
Do total de restos a pagar, R$ 88,1 bilhões correspondem a investimentos e quase o dobro se refere a despesas vinculadas ao funcionamento da burocracia estatal, adiadas para que o Tesouro Nacional pudesse, ao menos, cumprir a meta mínima de superavit primário (economia para o pagamento de juros da dívida pública) . “Não há dúvidas de que grande parte dos desembolsos foi adiada para ajudar o governo a fechar as contas”, observa Gil Castelo Branco, secretário-geral da Contas Abertas.

Fernando Montero, economista-chefe da Corretora Tullett Prebon, endossa essa visão. “Parte dos restos a pagar foi jogada para este ano para não atrapalhar o resultado fiscal de 2013. Diante da queda de receitas e da dificuldade do governo em controlar as despesas de custeio, houve necessidade de mais uma manobra”, assinala. Ele não tem dúvidas de que, não fosse esse arranjo, dificilmente o ministro da Fazenda, Guido Mantega, teria apresentado um superavit de R$ 75 bilhões “para acalmar os nervosinhos”.

Mas, além de comprovarem a esperteza do governo na hora de fazer maquiagens nas contas públicas e de reforçarem a ineficiência em tocar investimentos importantes para o país, especialmente os de infraestrutura, os restos a pagar contêm problemas políticos. Montero destaca que, por trás do orçamento paralelo, há vários grupos de interesse, seja um prefeito, um governador, seja um parlamentar. “O governo não cancela tais valores para não criar embates com o Legislativo. Para deputados e senadores, mesmo que não sejam pagos, os restos a pagar são uma forma de eles mostrarem em suas bases eleitorais que conseguiram determinadas verbas”, observa. “Esses restos causam mais problemas institucionais do que econômicos.”

Nos cálculos de Gil Castelo Branco, o governo empurrou de 2013 para 2014 a cifra recorde de R$ 63,9 bilhões, que foi somada aos R$ 177 bilhões que já estavam pendurados. Ele ressalta que a Fazenda e o Ministério do Planejamento têm a opção, assim como em anos anteriores, de cortar parte dessa fatura. Mas preferem fechar os olhos, por ser conveniente para o governo manter um instrumento tão poderoso como o orçamento paralelo.

Artificialismo
O Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) está dentro dessa manobra orçamentária. Enquanto, no ano passado, havia R$ 19,6 bilhões em recursos novos para gastar, os restos a pagar somavam R$ 25,1 bilhões. Por isso, os especialistas alertam que, diante da execução dos investimentos ocorrendo em grande escala via orçamento paralelo, não se contemplará obras prioritárias em 2014. “A atual administração está governando olhando para o passado”, lamenta Castelo Branco.

O Contas Abertas registrou outras manobras criativas do governo para melhorar o resultado fiscal de 2013. Segundo o coordenador da entidade, o Executivo adiou, até os últimos dias de 2013, o pagamento de obras e a compra de equipamentos. Entre 28 e 31 de dezembro, o Tesouro Nacional desembolsou R$ 4,1 bilhões, o dobro do que havia sido gasto até o dia 27. “O governo pagou, nesses dias, porque só seria possível sacar em 2014 e, para efeito de superavit primário só conta quando o dinheiro é retirado da conta-corrente”, explicou. “Foi uma medida para melhorar artificialmente o resultado fiscal de 2013”, afirma.

Fernando Montero diz que a manobra tem relevância para a contabilidade pública e gera mais desconfiança entre os investidores. “Tem impacto econômico e sobre a transparência das contas”, frisa. Castelo Branco observa que tais artimanhas enfraquecem o Congresso. “O dever dos parlamentares de aprovar o Orçamento anual está apequenado. Essa função, cada vez mais, é do Executivo”, sentencia. Esse problema, inclusive, é recorrentemente criticado, sem efeito, pelo Tribunal de Contas da União (TCU).

Outro lado
O Ministério do Planejamento, procurado pelo Correio, nega que os restos a pagar formem um orçamento paralelo e assegura que eles são a garantia de continuidade dos investimentos entre um ano e outro. “O orçamento brasileiro é anual, mas grande parte das despesas com investimentos é plurianual, com fluxos de pagamentos diferidos ao longo de vários anos”, defende, por meio de nota. “O mecanismo é importante para assegurar que recursos não executados estejam à disposição do governo no próximo ano fiscal, para que as ações sejam continuadas de acordo com seus cronogramas.”

A pasta ainda refuta que os restos a pagar tenham influência sobre o superavit primário. “Os restos a pagar não influenciam o superavit, porque não interferem na apuração do resultado fiscal, feito a partir do conceito de caixa, isto é, quando os pagamentos realizados pelo governo central são apurados pelo Banco Central. Esse sistema é definido pelo Fundo Monetário Internacional e seguido por grande parte dos países”, assinala. O Ministério da Fazenda não se pronunciou até o fechamento desta edição.