Realidade orçamentária piora com a emenda impositiva

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A União precisa de um Orçamento sério. Mudar a Constituição para torná-lo improvisadamente “impositivo” não melhorará em nada sua natureza de peça de ficção e poderá até piorar sua execução, se o Congresso aprovar a Proposta de Emenda Constitucional que está a caminho do plenário da Câmara. Numa demonstração da grandeza de objetivos e amplitude de visão dos deputados e senadores, a proposta trata basicamente de garantir que todas as emendas individuais dos parlamentares sejam atendidas até o teto de 1% da receita corrente líquida. Se já estivesse em vigor, isso corresponderia a algo como R$ 10 milhões per capita, segundo cálculo de parlamentares.

Há vários ângulos na questão. O momento é um deles. Como a presidente Dilma Rousseff viu sua popularidade despencar e a economia cresce a passos tímidos, a gigantesca base aliada governista resolveu encurralá-la com o orçamento impositivo à moda da casa. O patrocínio do PMDB e a insistência em aprová-lo oportunisticamente quase que se assemelham a vícios de origem. O PMDB nunca esteve preocupado com a transparência orçamentária ou com a austeridade no trato do dinheiro público, embora haja exceções no partido. Não é descabido para uma legenda fisiológica, que coliga uma miríade de interesses locais e regionais, propor uma equitativa distribuição de direitos a gastos.

É sabido que o Orçamento já é, em sua maior parte, impositivo. Para ser exato: 88% de suas despesas são obrigatórias, segundo a ministra do Planejamento, Miriam Belchior. O engessamento orçamentário, por obra da Constituição e também pela ação dos parlamentares, tem crescido e essa é uma das causas para a rebelião das emendas. Executivo e Legislativo disputam 11% das dotações e o espaço está cada vez mais apertado para ambos. Os representantes do Legislativo, não sem condescendência do Executivo, saíram-se então com o expediente de superestimar receitas na esperança de que uma parte de seus pleitos seja atendida.

Em tese, o teto atual para atendimentos das emendas é de R$ 15 bilhões. Depois dos contingenciamentos do Executivo, o número encolhe. Segundo a Consultoria de Orçamento e Fiscalização da Câmara, os parlamentares dirigiram o uso de 0,4% da receita corrente líquida nos últimos anos (Valor, 17 de julho), ou, hoje, R$ 2,5 bilhões. Ao estabelecer a obrigatoriedade de 1% da receita corrente (ou R$ 6,5 bilhões), o Legislativo traça um limite no território orçamentário que o Executivo pode trafegar. Deputados e senadores garantem um naco obrigatório, como os gastos com Saúde, Educação etc. Agiram antes que seja tarde demais: depois de ano após ano de crescimento, as receitas patinam. Politicamente, tornou-se um problema elevar a já alta carga tributária.

Aprovar a obrigatoriedade de atendimento de emendas individuais, ainda que dentro de limites, é consagrar o estereótipo do político como agente de interesses paroquiais. Políticos não podem prescindir de verbas nem de obras no mundo real do voto. A disputa política, é certo, está relacionada à distribuição de recursos do Estado a determinados objetivos e ao poder de, com isso, atender a interesses públicos. Não há nada de errado em querer verbas para seu curral eleitoral, desde que o projeto faça sentido no contexto de políticas nacionais ou regionais, debatidas e aceitas pelo Legislativo. A defesa legítima do dinheiro da emenda é de outra natureza. Deputados e senadores são representantes da nação. Para obras locais e estaduais já existem as Câmaras Municipais e Assembleias Legislativas.

Há outros perigos ainda. Tornou-se comum no financiamento de campanhas o patrocínio privado de deputados e senadores. O dinheiro para a campanha é o mesmo que encaminha projetos futuros de interesse do doador. Hoje os financiadores correm pelo menos o risco de que obras nas quais estão interessados, objeto de emendas, sejam contingenciadas ou recusadas. Com cada parlamentar exibindo na testa o valor a que tem direito, essa relação nada republicana tende a se estreitar.

Não há dúvidas de que o Legislativo deve definir os destinos das receitas dos contribuintes e o Executivo executar suas diretrizes após uma discussão séria e transparente sobre os projetos vitais para a nação, baseada em visões políticas ancoradas tecnicamente. A palavra principal tem de ser a dos legisladores que, aqui, não parecem se importar muito em legislar, quando não o fazem em causa própria.