Bernanke e a política monetária :: Luiz Gonzaga Belluzzo
Autor(es): Luiz Gonzaga Belluzzo |
Valor Econômico – 06/11/2012 |
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No Eu&Fim de Semana da última quinta-feira, André Lara Resende ofereceu ao leitor deste jornal uma excelente narrativa dos dilemas e aporias que infestam a política econômica nos Estados Unidos. André concentra suas considerações nos limites da política “relaxamento monetário” (quantitative easing, QE), cuja terceira rodada Ben Bernanke anunciou em Indianapolis. Vou reproduzir aqui trechos dos comentários que rabisquei para uma palestra, mais tarde publicados na revista “Carta Capital”. Bernanke procurou explicar à seleta plateia que, em circunstâncias normais, o Federal Reserve executa a política monetária mediante o manejo da taxa de juro de curto prazo. O propósito é afetar a curva de juros formada no mercado e, portanto, elevar os preços dos ativos. A crise de 2008, no entanto, nasceu das exuberâncias financeiras e produtivas do capitalismo desenfreado, ou seja, entregue a si mesmo. O superendividamento das famílias foi fomentado pelo elástico crescimento da dívida intrafinanceira e acompanhado da geração de capacidade produtiva excedente nas áreas dinâmicas do planeta. Ainda que nos países centrais a taxa de investimento tenha sido modesta, foi mais do que compensada pela vigorosa expansão da formação de capital fixo nas economias emergentes asiáticas. A generosa liquidez do estímulo quantitativo vazou para as gargantas insaciáveis da armadilha da liquidez A fecundação entre os três movimentos – endividamento das famílias, alavancagem financeira e construção acelerada de capacidade nos emergentes está nas entrelinhas da fala de Bernanke quando ele justifica os quantitative easings 1, 2, e 3. Na ressaca dos excessos, observadores atentos da cena econômica concluíram que não se tratava de uma crise de liquidez senão de insolvência de famílias e bancos, seguida do inevitável mergulho do consumo e do investimento. Na crise de 2008, ocorreu um colapso “keynesiano” das convenções que comandavam as avaliações dos proprietários e administradores da riqueza. A reversão das expectativas outrora exuberantes derrubou os preços dos ativos reais e financeiros. Os métodos habituais que permitem avaliar a relação risco/rendimento dos ativos sucumbiram diante da obscuridade total que paralisou os mercados de dívida e de direitos de propriedade, bloqueando os novos fluxos de gasto. Na posteridade do colapso, a tentativa de redução do endividamento e dos gastos de empresas e famílias em busca da liquidez e do reequilíbrio patrimonial – uma decisão “racional” do ponto de vista microeconômico – tornou-se danosa para o conjunto da economia, pois levou à ulterior deterioração dos balanços, aí incluída a relação dívida/PIB dos governos empenhados em impedir a depressão. Em tais circunstâncias, diz Bernanke, não há outra solução senão abrir o balanço do Banco Central para impedir a ruptura das relações débito-crédito. A compra pelo Fed de securities de emissão publica e privada cumpriu seu papel ao manter baixas as taxas de juro. O propósito do QE é recuperar os preços dos ativos, particularmente dos imóveis residenciais, uma tentativa de reanimar o consumo mediante um “efeito-riqueza” em tempos de penúria. Desgraçadamente, os esforços da política monetária foram contidos pelos consumidores empenhados em reduzir as dívidas e pelas famílias assustadas com as perspectivas do mercado de trabalho. A liquidez injetada pelo Quantitative Easing empoça nas reservas dos bancos e adormece no caixa das empresas. Atoladas em capacidade ociosa, as empresas estão reticentes em mobilizar seu aparato produtivo diante do consumo claudicante e do mortiço animal spirits dos parceiros-competidores. A taça transbordante do “relaxamento monetário” não derramou o líquido nos lábios sedentos do desemprego e da capacidade ociosa. A generosa liquidez do estímulo quantitativo vazou para as gargantas insaciáveis da “armadilha da liquidez”. Nos Estados Unidos, as expectativas de bancos, empresas e famílias são típicas de um quadro depressivo. Trata-se de uma depressão não realizada, apenas bloqueada pelas intervenções do Banco Central. Bernanke adverte que na atual conjuntura, a política monetária não pode mais do que faz e a política fiscal faz menos do que pode. Quanto à inflação, as sobras de capacidade global e os mercados de trabalho frouxos não recomendam essa aposta. Em meio às ousadias da política monetária e à tibieza da política fiscal, o ex-editor do “Times” de Londres, hoje colunista da “Reuters”, Anatole Kaletsky, sugeriu que a grana do quantitative easing fosse depositada diretamente nas contas das famílias consumidoras e das empresas dispostas a dar emprego aos trabalhadores. “Imagine”, diz Kaletsky, “se o Federal Reserve decidir usar os US$ 40 bilhões – agora destinados ao mercado de títulos – para depositar todo o mês US$ 130 nas contas das famílias e das empresas até que a economia se aproxime do pleno emprego… Caiu o tabu que impedia os bancos centrais de enfrentar a questão do emprego: a adoção de políticas monetária radicais é uma questão de tempo.” A proposta de Kaletsky equivale à sugestão de Keynes que recomendava, em situações depressivas como a atual, a contratação de trabalhadores que receberiam salários para abrir e tapar buracos. O gasto com os salários dos trabalhadores “improdutivos” deveria inflar a renda nominal e alentar diretamente o consumo, colocando em movimento os recursos “livres” de capital e trabalho, sem agregar nova capacidade à já instalada e excessiva. A sugestão radical escandalizou os bem pensantes. Seja como for, os resultados do Quantitative Easing e a argumentação de Bernanke dão azo a propostas como a formulada por Kaletsky. Na verdade ela revela um conhecimento profundo da estrutura monetário-financeira da moderna economia capitalista de mercado e do modo de integração da moeda no circuito gasto-produção-rendimentos. No entanto, se não peca pela lógica estritamente econômica, a proposta esbarra nas relações de apropriação da renda e da riqueza no capitalismo de todos os tempos. Essas relações impõem limites às escolhas das sociedades e dos governos, ainda que as condições “técnicas” para a sua adoção tenham sido criadas pela própria “socialização” capitalista das formas de controle da riqueza. Luiz Gonzaga Belluzzo, ex-secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda é professor titular do Instituto de Economia da Unicamp e escreve mensalmente às terças-feiras. Em 2001, foi incluído entre os 100 maiores economistas heterodoxos do século XX no Biographical Dictionary of Dissenting Economists. |