Orçamento e despesa primária

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Autor(es): Mansueto Almeida

Valor Econômico – 22/11/2012

 

 

Recentemente o governo federal anunciou que não conseguirá alcançar a meta do resultado primário para o setor público de 3,1% do Produto Interno Bruto (PIB) este ano. Apesar dessa notícia não ter sido uma surpresa para quem acompanha as contas públicas, uma análise mais detalhada dos dados assusta e levanta dúvidas sobre a capacidade de o governo federal conciliar sua agenda de aumento do investimento público com redução da carga tributária.

É interessante observar que enquanto todos parecem ter opinião formada sobre taxa de juros e sobre os erros e acertos do Banco Central, o cidadão comum fica alheio ao debate anual do orçamento que é, justamente, a área na qual decisões políticas são mais importantes do que decisões técnicas. Em vez de discutir “juros” (política monetária), o cidadão brasileiro deveria se envolver mais no debate fiscal, pois neste as decisões são políticas. Mas isso não acontece por pelo menos três motivos.

Primeiro, não há dentro do próprio governo um consenso de como as estatísticas fiscais são divulgadas. Por exemplo, a despesa primária (gasto não financeiro do governo federal), em 2011, foi de 17,5% do PIB de acordo com o Tesouro Nacional. No entanto, o Boletim da Secretaria de Comunicação da Social da Presidência da República, Nº 1656, de 13 de novembro de 2012 mostra que: “os investimentos anuais do governo federal em políticas sociais saltaram de 13% do PIB há dez anos para quase 17% em 2012.”

No caso do MCMV, praticamente metade do custo desse programa de 2009 a 2011 foi bancado pelo FGTS

É impossível que praticamente todo o gasto do governo federal seja em política social e, apesar desse gasto ser aquele que mais cresce desde 1999, chama-se de gasto social no Brasil tanto o Bolsa Família quanto as aposentadorias e pensões de servidores públicos. Como o cidadão vai opinar sobre esse assunto se o próprio governo não é claro na divulgação dos dados?

Segundo, há ainda no Brasil falta de informação quanto ao custo de alguns programas. Cito dois que passaram a ser importantes: o Minha Casa Minha Vida (MCMV) e o Programa de Sustentação do Investimento (PSI) do BNDES. Independentemente do mérito desses dois programas, o custo deles deveria ser claro para que a sociedade pudesse decidir se quer gastar mais ou menos com esses programas frente a outras despesas e outros investimentos.

No entanto, poucas pessoas têm ideia do custo desses programas. No caso do MCMV, praticamente metade do custo desse programa de 2009 a 2011 foi bancado pelo FGTS. E o seu custo não é pequeno. O custo total desse programa, inclusive os subsídios pagos pelo FGTS, passou de R$ 2,8 bilhões, em 2009, para um valor que ficará próximo a R$ 17 bilhões este ano.

O caso do PSI é ainda mais nebuloso. O governo federal se recusa a dar informações relativas ao custo desse programa. Vale lembrar que os empréstimos do Tesouro Nacional para os bancos públicos saíram de um valor inferior a R$ 10 bilhões, no início de 2008, para R$ 369,1 bilhões, em setembro. É muito provável que o estoque desses empréstimos cresça para meio trilhão de reais nos próximos dois anos. Como o seu custo não é claramente divulgado e a Secretaria do Tesouro Nacional se recusa a falar com jornalistas sobre o assunto, passa-se a impressão para o cidadão que não há custo imediato na opção de se construir um, dois ou mais trens de alta velocidade.

Terceiro, apesar de o governo ter um baixo controle sobre a execução orçamentária, já que apenas 10% da despesa não financeira pode ser considerada discricionária, na prática o governo vem utilizando de artifícios que têm tornado a execução das despesas obrigatórias ainda mais rígidas. Um exemplo disso é o crescimento excessivo do saldo de restos a pagar não processados, recursos empenhados de anos anteriores que são pagos no ano corrente.

Esse artifício é tão danoso para a transparência das contas fiscais quanto o uso de receitas atípicas, dividendos forçados, para “completar” a projeção de receita. Este ano até outubro, o pagamento de empenho de anos anteriores, restos a pagar não processados, alcançou R$ 56,7 bilhões; um crescimento de 70% em relação ao valor pago ao longo de 2009.

Ao contrário da percepção comum que recursos empenhados em um ano e pago em outros decorre dos atrasos normais nas obras de investimento, recursos de orçamentos anteriores para pagamento de despesas de custeio aumentaram substancialmente: R$ 51 bilhões inscritos, em 2012, ante R$ 25,9 bilhões, em 2009. E a postergação de gastos de custeio e investimento passou a afetar até mesmo despesas obrigatórias como foi o caso, no ano passado, de despesas de saúde, que tiveram R$ 8 bilhões de despesas obrigatórias postergadas, dando origem a restos a pagar não processados que não podem ser cancelados.

O debate orçamentário no Brasil se dá de tal forma que o Congresso Nacional é chamado para debater novos programas que se somam aos já existentes e o mecanismo para compatibilizar o crescimento da despesa, com a receita e o primário programado passa a ser o uso cada vez maior de receitas atípicas e atraso programado na execução da despesa. As despesas de anos anteriores passam a competir com despesas do orçamento do ano e, em algum ano, o equilíbrio precisa vir ou pelo aumento maior da receita ou por uma queda do primário.

Infelizmente, enquanto não houver maior transparência no custo das politicas públicas e no debate e execução do orçamento, o debate fiscal ficará restrito a “especialistas” e não a quem de fato importa neste debate que é o cidadão, que utiliza serviços públicos e paga uma carga tributária de primeiro mundo.

Mansueto Almeida é pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). A opinião expressa é a do autor, não exprimindo o ponto de vista do instituto.