É preciso exorcizar e comunicar

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Autor(es): Alexandre Schwartsman

Dentre as novidades do último Relatório Trimestral de Inflação (RTI) destaca-se a adoção de uma nova forma de introduzir a política fiscal nos modelos do BC. Em vez do superávit primário consolidado do setor público, o BC passou a usar o superávit primário estrutural, o que, em tese ao menos, representa um avanço considerável para capturar a real postura da política fiscal. Antes, porém, de explorar possíveis consequências dessa medida é bom examinar com um pouco mais de detalhe o que significa esse conceito, assim como as vantagens e riscos que oferece na comparação com a metodologia anterior.

Estamos acostumados a pensar no resultado fiscal como uma variável de política, sob controle do governo, o que é parcialmente verdade, mas não captura integralmente o fenômeno. Na verdade, tanto a arrecadação quanto (em menor medida) os gastos públicos também reagem de forma automática ao ciclo econômico.

Não é preciso grande esforço de imaginação para notar que a arrecadação tende a ser procíclica, isto é, a aumentar nos momentos em que a economia cresce mais forte, assim como perde fôlego quando a atividade assim o faz. Alguns gastos também tendem a seguir o ciclo, embora no Brasil o efeito só pareça ter alguma relevância no caso do seguro-desemprego, equivalente a pouco menos de 1% do PIB.

Não cabem mais declarações vagas acerca da política fiscal atrás das quais o BC costuma se esconder

Dessa forma, na ausência de medidas compensatórias, o superávit aumenta quando a economia se aquece e, de forma inversa, encolhe em períodos recessivos, processo que na literatura econômica é descrito como “estabilizador automático”.

O funcionamento dos estabilizadores automáticos traz, portanto, uma dificuldade para avaliação da verdadeira postura fiscal. Um superávit elevado, por exemplo, pode resultar tanto de uma política fiscal austera como de uma economia sobreaquecida. No caso, embora o estabilizador automático ajude, em alguma medida, a moderar o sobreaquecimento, é possível que a postura fiscal seja inadequada, isto é, pode ser necessário que ela estivesse ainda mais apertada.

Não faz sentido, portanto, à luz do que foi descrito acima, comparar diretamente resultados fiscais, seja entre países, seja num mesmo país ao longo do tempo, sem tentar, de alguma forma, isolar o efeito do ciclo econômico sobre as contas do governo. Isso é feito pela estimação do balanço fiscal “ciclicamente ajustado”, às vezes denominado “superávit de pleno emprego”.

A ideia é simples, muito embora sua execução não o seja: calcula-se qual seria o resultado fiscal caso a economia estivesse operando próxima ao seu potencial. Sob tais circunstâncias o resultado estimado reflete unicamente a postura fiscal, não o estado da economia. Em particular, se o superávit ciclicamente ajustado aumenta, a política é inequivocamente contracionista; caso contrário, expansionista.

Adicionalmente, por conta da tristemente célebre contabilidade criativa em alta nos últimos anos, é também necessário “exorcizar” o balanço fiscal de seres imaginários, como o Fundo Soberano, ou receitas de “Cessão Onerosa de Exploração de Petróleo”.

A aplicação de ambos os ajustes (cíclico e o exorcismo da contabilidade criativa) sobre o resultado primário observado gera o chamado resultado primário estrutural, que, pelas razões acima, representa um guia mais fidedigno da política fiscal.

Há, é bom que se diga, dificuldades. Embora o conceito do resultado ciclicamente ajustado seja relativamente simples, sua estimativa depende de parâmetros a rigor desconhecidos como o PIB potencial, problema nada trivial para quem já tratou do assunto. Fora isso, são necessárias estimativas confiáveis da reação da arrecadação a mudanças do nível de atividade e outras questões empíricas, no mínimo trabalhosas.

Isto dito, não resta dúvida que, do ponto de vista analítico, todas essas dificuldades pouco representam em face da enorme vantagem de passarmos a trabalhar com uma medida de política fiscal que capture, ainda que imperfeitamente, a real postura do governo em vez de engolir as crescentemente desacreditadas estatísticas oficiais. Nesse aspecto, a adoção do superávit primário estrutural é uma inovação relevante e merece nossos aplausos, ao contrário de quase tudo originado do BC nos últimos anos.

Ao mesmo tempo, porém, há um requisito adicional de transparência. Não cabem mais declarações vagas acerca da política fiscal atrás das quais o BC costuma se esconder como, por exemplo: “considera-se como hipótese de trabalho a geração de superávit primário de R$ 155,9 bilhões em 2013, conforme os parâmetros da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO)”.

É necessário agora que o BC explicite suas premissas acerca do superávit estrutural ao longo do horizonte de previsão de política monetária para que possamos avaliar se suas decisões de política, a exemplo de seus modelos, também reagem às diferentes condições de política fiscal. Sem transparência, a mudança torna-se um mero exercício acadêmico, sem maior relevância para a avaliação da política monetária.

**Alexandre Schwartsman, doutor em Economia pela Universidade da Califórnia, Berkeley, e ex-diretor de Assuntos Internacionais do Banco Central é professor do Insper e sócio-diretor da Schwartsman & Associados. Escreve mensalmente às quintas-feiras.