Taxa de câmbio e desenvolvimento

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Antonio Delfim Netto

Valor Econômico – 29/01/2013

 

 

Surjit S. Bhalla é um experimentado e muito bem apetrechado economista. Foi pesquisador nos mais importantes “thinking tanks” da teoria econômica – Rand Corporation, Brookings Institution e Banco Mundial. Amassou o barro prático na Goldman Sachs e no Deutsche Bank. Hoje é o “chairman” da Oxus Investments, um hedge fund baseado em Nova Déli. Há pelo menos 20 anos, vem tentando convencer os economistas do “mainstream” que a proposição que eles aceitam como axioma – “a sobrevalorização do câmbio real pode ser prejudicial ao crescimento econômico” – é também verdadeira na sua forma simétrica – “a subvalorização do câmbio real pode ser benéfica ao crescimento” -, com a qual eles têm muita dificuldade de conviver.

Ele acaba de publicar um magnífico volume, “Devaluing to Prosperity” (2012), pelo respeitado Peterson Institute for International Economics. Prefaciado pelo insuspeitíssimo e competente C.F. Bergsten o livro de Bhalla vai dar trabalho aos economistas do “mainstream”. Analisa o problema da taxa de câmbio real com muito cuidado, a começar pelo reconhecimento que a taxa de câmbio real é um animal fugidio e sua estimação estatística é frequentemente complicada por questões de endogeneidade.

A tese que uma taxa de câmbio relativamente desvalorizada ajuda o desenvolvimento é construída em etapas, através do seu efeito sobre o nível de investimento da economia (quando o custo do capital é competitivo): 1) ela leva a um menor custo da produção (porque, em geral, reduz o preço do trabalho em dólares em magnitude, mais do que aumenta em moeda nacional o custo dos insumos importados); 2) isso aumenta o lucro; 3) esse estimula o aumento do investimento e, finalmente, produz: 4) o aumento do crescimento.

Moeda relativamente desvalorizada ajuda a estimular crescimento

Um argumento interessante de Bhalla foi muito usado nos anos 70 do século passado no Brasil: uma taxa de câmbio desvalorizada é, no fundo, uma política industrial horizontal. Beneficia a todos os setores igualmente. Eles se diferenciam, depois, pela capacidade de competir das empresas. Isso leva ao desenvolvimento “export-led”, fator fundamental frequentemente “escondido” nas análises do “mainstream” do processo asiático (em particular da Coreia).

A ideia que a taxa de câmbio real é uma variável endógena, e que as desvalorizações nominais são sempre anuladas (mesmo no curto prazo) pelo aumento da taxa de inflação, é claramente desmentida não apenas por nossa própria experiência com a grande desvalorização de 1999, que produziu uma inversão no balanço em conta corrente nos anos seguintes, sem produzir aumento sensível dos preços.

Esse fato desmontou a posição de alguns “brasilianistas” que juraram, às vésperas da desvalorização, que, se ela se realizasse, teríamos a volta da hiperinflação. Bhalla cita alguns exemplos: a desvalorização da libra inglesa (no famoso “Black Wednesday”) e da China, que, entre 1980 e 1995, desvalorizou nominalmente o renminbi (que é o nome da moeda chinesa, yuan é o seu valor) em 201% e a taxa de inflação chinesa (descontada, obviamente, da inflação dos EUA) não cresceu mais do que 21% nos 16 anos que separam 1996 de 2011.

Simetricamente, o mesmo ocorreu com o Japão que, desde o início dos anos 90 do século passado, têm uma taxa de inflação negligível, enquanto o iene se valorizou de 160 para 80 por dólar. Não há, portanto, nenhuma razão para recusar a tese de Bhalla, de “que uma desvalorização nominal pode ser real” (pág. 227).

O autor chama a atenção para o fato que mesmo uma taxa de câmbio nominal aparentemente constante pode embutir uma valorização, devido ao famoso efeito Balassa-Samuelson (a tendência à valorização do câmbio com o crescimento do PIB), “ajudado por políticas claramente desvalorizadoras desde a crise de 2007”.

Essa depreciação real despercebida tem sido parte importante da história da China e dos países asiáticos desde a crise cambial de 1997-98. Bhalla faz uma interessante comparação histórica, mostrando que no século XIX a Inglaterra e a Holanda tinham as taxas de câmbio reais mais desvalorizadas do mundo, o que talvez explique seu crescimento.

Na minha opinião, essa é a parte mais vulnerável da análise. Quando afirma que “em vários países desenvolvidos a taxa de juros real de 1950 era a mesma de 1870, pesadamente subvalorizada”, as coisas perdem um pouco da sua claridade e coerência. Bhalla chama ainda a atenção para um fenômeno que chama de “mercantilismo”; a coexistência, em inúmeros países asiáticos onde convivem alegremente taxas de câmbio desvalorizadas, com grandes superávits em conta corrente e imensa acumulação de reservas internacionais.

O caso brasileiro é diferente, com um câmbio supervalorizado vemos crescer nossas reservas à custa de superávits em conta corrente, que alimentam a expansão do nosso passivo externo.

O “mainstream” vai ter muito trabalho para deixar de encarar a possibilidade teórica e a experiência histórica que sugerem que uma taxa de câmbio relativamente desvalorizada e estável foi um complemento importante no processo de desenvolvimento da maioria dos países, e que não há razão para supor que o caso brasileiro seja uma exceção.

Antonio Delfim Netto é professor emérito da FEA-USP, ex-ministro da Fazenda, Agricultura e Planejamento. Escreve às terças-feiras